domingo, 30 de dezembro de 2012

O tigre e o extraordinário

Faz um tempinho que manifestei meu desejo de ver "As aventuras de Pi", de Ang Lee, que concorre ao Globo de Ouro de melhor filme, diretor, trilha sonora e que deve receber também indicações ao Oscar. Confesso que a primeira coisa que me atraiu nele foi a figura soberana de um tigre de Bengala. Adoro tigres. Adoro grandes felinos - e os pequenos também. Sou uma cat lover.


"As Aventuras de Pi", de Ang Lee, conta a história do jovem Pi que viaja com sua família da Índia para o Canadá, com os animais do zoológico de seu pai. O navio afunda e restam ele, Pi e o tigre, à deriva no mar. Foto: divulgação

Assim que vi o trailer no YouTube, meses antes de o filme entrar em cartaz, eu me prendi à história: um jovem náufrago em um bote com um tigre, os dois lutando para sobreviver. A proposta em si já desafia a mente. Ainda mais uma mente como a minha, tão apaixonada que sou por tigres e tão sabedora dos perigos de se lidar com animais selvagens (não se iluda: eles não são amiguinhos fofinhos. Se tem dúvida, veja o documentário "O homem urso", de Werner Herzog). Observação: digo sabedora porque há dois assuntos em que me considero boa de fato, que são música e bichos.



Outro apelo forte - e que bela estratégia de comunicação para divulgar o longa - é o lema do filme: acredite no extraordinário. Muito bem! Eu sou filha de bolivianos. E o que tem isso? Talvez seja a sorte de ter nascido na minha família, porém carrego em mim a crença de que latino-americanos têm a tendência de narrativas de realismo fantástico, uma característica forte entre meus parentes. Quando eu leio Gabriel Garcia Marquez ou Isabel Allende ou Manuel Scorza, eu penso na minha família. Na minha mãe contando histórias. Nas aventuras relatadas pelo meu pai (que "caçava tigres", embora eu dissesse que tigres não são nativos da América e ele me respondesse "pois nós dizíamos tigres"). E em outras tantas vezes em que ouvi de tios, primos ou amigos de meus pais casos em que havia um quê de mistério, de fantasia. Cresci ouvindo histórias assim. Eu tinha mesmo de gostar de narrativas extraordinárias. Tinha de gostar de realismo fantástico.


O filme concorre ao Globo de Ouro de melhor filme, direção e trilha sonora. Deve receber indicações ao Oscar. Foto: divulgação

Depois desse preâmbulo, vamos ao filme. Resolvi escrever sobre ele porque estou pensando nele. "As aventuras de Pi" é uma daquelas obras que guardarei bem na memória pelo espetáculo que me proporcionou aos sentidos. Gosto de Ang Lee. Sua versão de "Razão e Sensibilidade", com Emma Thompson, é arrebatadora. E falo isso como fã ardorosa dos livros de Jane Austen. Curto tanto "Razão e sensibilidade" que já fui motivo de chacota do ex-marido. Mas também adoro "O tigre e o dragão". Nesse filme, é sublime o amor não-consumado de Li Mu Bai pela lutadora que também enfrenta a ladra da espada “Destino Verde” (quando está morrendo, Li Mu Bai diz que desperdiçou sua vida e que amava a lutadora, e que prefere ser um fantasma cavalgando ao lado dela em vez de entrar para a eternidade sem ela). Eu esqueci o nome da personagem, que também ama o mestre de kung-fu.

Outros filmes de Ang Lee:


O Tigre e o Dragão



Razão e Sensibilidade



O Segredo de Brokeback Mountain





Ang Lee tem um cuidado especial com a paisagem, com a fotografia e com a poesia das cenas. A história pode ser uma luta de kung-fu, um romance do século XIX na Inglaterra, ou um naufrágio no Pacífico. Ele constrói imagens que arrebatam. E posso dizer que, pela primeira vez, vi sentido total no 3D. A tecnologia adotada é um elemento que dá mais força à narrativa. Ok, a história é boa também mesmo sem a terceira dimensão. Mas o recurso vale muito a pena.

Ang Lee produz imagens belíssimas. É uma marca sua. E ele soube utilizar muito bem a tecnologia em favor da narrativa. Foto: divulgação

O esmero em criar as cenas das tormentas e tempestades é tanto que teve horas em que senti certo enjoo do mar. Eu não costumo enjoar em cruzeiros (que são navios obviamente muito maiores do que o bote do longa-metragem). Então, é curioso que eu tenha passado por isso no cinema. Aquele sacudir, aquele balanço que causou enjoos para o tigre na história me abalou igualmente, influenciada que fui pelas imagens.

Li que o diretor afirmou que esse foi seu projeto mais difícil. Foram quatro anos para realizar o longa. Ele voltou para sua terra, Taiwan, para construir um tanque imenso onde foram feitas muitas partes das cenas no mar. Li ainda que Ang Lee, agnóstico declarado, até voltara a rezar. Cansado que estava da complexidade que criara para ele.


Mas o esforço valeu.

Recomendo que se veja o filme em 3D. Vale cada real a mais. Foto: divulgação


Não pretendo revelar detalhes importantes da história. Colocarei uma ou outra coisa, porém vou sinalizar o spoiler. Assim, quem não quiser saber do trecho em questão, bastará pular o parágrafo.

Alguém escreveu que “As aventuras de Pi” não são exatamente para crianças, que podem se sentir seduzidas pela figura do tigre. Acho que o longa não é mesmo para os muitos pequenos, mas dá para assistir. Outro crítico apontou que haverá gente a se irritar com a mensagem religiosa – ou de fé – no filme. Mais do que religião – e isso tem mesmo –, vi ali questões filosóficas que eu não sei responder.

Vivo meu processo particular de questionar a vida, e nisso questiono muito minha pessoa também. Vendo o filme, veio à tona um pouco desse meu debate interno. Até que ponto, afinal, conseguimos ou devemos suportar desafios? Até a corda arrebentar, até virarmos para o céu de tempestade e gritarmos: “pode vir. Estou pronto”?

Ao falar disso, relembro uma cena forte.




SPOILER.




O mar revolto e as tempestades acabam sendo personagens do filme também. Foto: divulgação

Não leia se não viu o filme.

SPOILER.

Depois de muita superação – com água e peixes obtidos na sorte e no esforço, o que ainda assim não basta aos dois, o náufrago e o felino –, Pi se confronta com mais uma tempestade. Ele e o tigre, que se chama Richard Parker (ótima sacada), estão debilitados, magros, moribundos. E vem a tormenta. Pi se ergue e grita aos céus que está feliz por ir ao encontro de sua família (que tinha morrido no naufrágio). Ele questiona Deus por ter tirado tudo dele. A família, o amor (ele deixou a namorada na Índia), seu país (a família estava de mudança para o Canadá). E Pi tira a lona que cobre parte do bote, local onde o tigre se abriga. E grita para Richard Parker olhar aquela beleza. E a tempestade e as ondas caem sobre eles. Sinto o sofrimento do tigre, que está mais desprotegido do que nunca. O animal não vê beleza alguma na fúria da natureza. Ele enxerga apenas a destruição. Pi, meio louco pela dor e atordoado pelas consequências da inanição, enfim se entrega. E grita que a morte pode buscá-lo. Ele está pronto. É uma cena tão intensa que não aguentei. Chorei. E outros choraram no cinema. A gente não está preparado para ver alguém entregando os pontos. Na sequência, Pi recobra um pouco da razão e corre a estender a lona e amarrá-la no bote, fechando-o e protegendo-o do baque das fortes ondas. Entendo que o sofrimento do tigre o traz de volta.


FIM DO SPOILER.


Pode voltar a ler agora, se você não viu o filme.


FIM DO SPOILER



O que você faria numa situação dessas? Foto: divulgação


Pode ser que o filme pareça longo. Pode ser. No entanto, eu gostei de tudo, do princípio ao fim. Mesmo da abertura, com cenas de bichos em 3D e nenhum diálogo, só a música funcionando como elemento integrador. Eu já disse que gosto de bichos, e, se você não sabe, a trama se trata da família de Pi, que tem um zoológico numa região da Índia que já pertenceu à França. Então, tem uma parte que acontece na escola (infância de Pi), outra nas viagens da família (momento em que Pi se depara com as diferenças e bases de três linhas religiosas, a hindu, a católica e a muçulmana), e aí vem o centro da história, que se passa no mar e também numa ilha misteriosa (ei, J.J. Abrahams, o que você achou disso? Que tal Lost ali?). O final se dá num hospital. Quer dizer, tudo isso acontece na narração de Pi, que é procurado por um escritor interessado em sua história extraordinária.


A narrativa de Pi soa inacreditável e, no finzinho do que ele conta ao escritor, diz que teve de dar uma outra versão para os representantes da seguradora do navio que afundou. Eles não queriam aceitar sua história. Então, Pi faz uma apresentação mais crível dos fatos, para satisfazer os japoneses (a bandeira do navio era japonesa). Ah, a burocracia!

Para quem gosta de bichos, como eu, é a festa. Dá quase uma Nat Geo com o "milagre" da multiplicação digital. Aqui, suricatos em uma ilha que parecia a redenção, mas que se revela outra coisa. Será? Foto: divulgação

Agora, sem maiores delongas: atente para a trilha sonora. É boa mesmo. Envolva-se pela direção, muito bem executada (parabéns, Ang Lee). Aprecie a interpretação do ator que faz o Pi jovem, o náufrago. Chore, se sentir vontade, quando ele é obrigado a abrir mão de seus princípios em função da tragédia (isso está claro no longa). Ou não chore (afinal, é só um filme). Ria da temática religiosa. Ou respeite as dúvidas que Pi tem. Encante-se com as cenas noturnas produzidas pela computação (como resistir aos peixes, algas e plânctons fosforescentes?) e com o 3D perfeitamente utilizado. Admire a recriação digital de animais (há uma ampla variedade, dos bichos do zoológico aos suricatos da ilha misteriosa. Eu me prendi ao estado doloroso de uma zebra e aos gestos e olhares de um orangotango fêmea chamada de Suco de Laranja. Ah, como senti por você, Suco de Laranja). Renda-se à majestosa – e assustadora e até vingadora – figura do tigre. Questione-se quando você teria morrido ou matado (na saída do cinema, a gente comentava isso: um teria morrido dormindo, sem perceber a tempestade; outro teria morrido afogado; mais de um teria matado o tigre logo de cara). Pergunte-se por que exatamente Pi sofre ao ser finalmente resgatado. O que quer dizer aquilo? Qual o fundo da história? E faça sua escolha: a narrativa de Pi ou a versão que ele deu aos japoneses. Em qual você prefere acreditar?

Mais sobre o filme:




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