domingo, 5 de fevereiro de 2012

“I see dead people”

Fragmentos de uma mente caótica, a minha. Sério, dá para deixar a mente trabalhando em ordem? A minha viaja, assume várias direções e vai montando um acolchoado de histórias. Só eu me entendo nessa bagunça.

Ahn, este post está dedicado ao fantástico. Não, não se refere ao programa. É melhor ler para saber.

- O homem escondido na árvore
Não sei se vocês sabem, mas há fantasmas no Bom Retiro. Dou exemplos – e dou fé. Quando eu era criança, brincava de escolher alguém na rua e acelerar meus passos para ultrapassar essa pessoa. Podia ser moleque ou adulto. Eu marcava quem seria a “vítima” do meu rápido caminhar. Daí, acelerava até superar a pessoa escolhida. Era uma pequenina vitória. Era uma brincadeira que apreciava. Devia ter oito, dez anos.

Numa manhã escolhi um velho. Ele estava uns metros a minha frente. Não seria difícil ultrapassá-lo ainda que eu carregasse a mochila pesada da escola e o velho nada trouxesse. Estávamos perto da igreja Nossa Senhora Auxiliadora. Acelerei os passos. Não seria difícil. Apressei mais. Estava perto. Mantive o ritmo veloz. Minha vitória logo viria. Mas o velho virou à esquerda na esquina da igreja e sumiu da minha vista, protegido da minha visão pela imensa estrutura da construção. Dei minhas passadas e estava crente que seria dobrar a esquina da igreja e alcançar o velho. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o homem tinha desaparecido. Como assim? Ele virou a esquina e eu virei dois segundos depois. Não havia nenhuma porta nas imediações. Não tinha como ele entrar em qualquer lugar. E nem atravessar a rua sem que eu o notasse. Nem mesmo se corresse. Não daria tempo de ele sumir da minha vista. Mas ele parecia ter sido tragado pela terra.

Eu parei por instantes procurando por ele. Nunca entendi o que se passou. Por vezes achava que ele poderia ter sido um fantasma. O velho não devia ser gente de carne e osso. Não havia resposta racional para o sumiço.


Esta é a igreja Nossa Senhora Auxiliadora, que fica em frente à pça. Cel. Fernando Prestes, onde fica o metrô Tiradentes

Esse foi o primeiro grande caso de gente-que-não-existe ter ocorrido no Bom Retiro. Quer dizer, das histórias que sei. O bairro é bastante velho. O Parque da Luz, onde corro, foi instituído, por exemplo, em 19 de novembro de 1798.

Outro dia minha filha estava andando de carro com minha irmã. E de repente ela se espantou. Disse para minha irmã: “juro que vi um homem na esquina e que ele sumiu de repente”. Quando soube da história, brinquei: “vai ver é o velho que eu tentei ultrapassar na minha infância”.

Isso me lembra outra ocasião da infância. Na verdade da adolescência. Acho que estava com 14 anos. Eu tinha de pegar um ônibus e estava no ponto perto da igreja Nossa Sra. Auxiliadora. Do outro lado da rua, no meio de arbustos e folhagens altas, divisei um vulto. Não conseguia ver seu rosto, mas tive a certeza de que ele me olhava. Tentei enxergá-lo melhor, apertando os olhos (desde os 13 anos uso óculos). Mas vinha um ônibus e tive de parar. O ônibus corria e não havia ninguém para fazer sinal de parada. Quer dizer, eu e mais uma pessoa estávamos no ponto e essa pessoa não se aproximara, percebendo que não se tratava do coletivo que esperava.

Distraí-me olhando o ônibus que vinha rápido. Então, senti que me empurraram. Tomei um susto e fui projetada para frente. Felizmente, consegui me equilibrar e puxar meu corpo para trás bem a tempo de evitar que o ônibus me pegasse. Virei para ver quem tinha me empurrado. Ninguém. Aquela pessoa que estava no ponto não tinha saído de seu lugar e aparentemente nem tinha notado o que tinha acabado de acontecer. Voltei a olhar para os arbustos do outro lado da rua. O tal vulto tinha ido embora. De novo, não tinha resposta racional para o que acontecera. No entanto, achei que o vulto tinha sido o autor do empurrão.

Agora retomo o presente. Numa de minhas corridas de “madrugada” (às 5h45), passei por um homem escondido numa árvore, perto do portão principal, o único que fica aberto no horário da caminhada (5h30 às 9h). Era minha primeira volta no parque. Imaginei que o homem, que usava calça escura e uma camiseta azul, tivesse ido para lá para se aliviar. Desviei o olhar desse trecho da trilha. Estava escuro, mas eu não iria encará-lo num momento tão inapropriado. Pensei que ele devia ser novato no parque. Tem um banheiro que fica aberto no final do trecho que circunda a Pinacoteca.




Boo! O homem que vi estava à esquerda da árvore, e não à direita como nesta foto

O homem estava escondido mesmo. Ao passar por ele, pouco antes de desviar o olhar, notei que se apoiava na árvore e me observava. Seu rosto estava protegido pela escuridão. Continuei correndo. Na minha segunda volta, logo depois de deixar para trás o portão principal, entrei na trilha de terra, rumo à “Floresta Úmida”. No mesmo trecho da árvore, eu percebi o homem. Bem, então, ele não estava ali para fazer xixi. De novo, notei que ele se esgueirava na árvore e sua cabeça se movimentava para acompanhar meus passos. Tive um pequeno calafrio. Corri mais um pouco e no momento em que fazia a curva para entrar de vez na “Floresta Úmida”, virei o rosto para encarar o homem. Ele tinha sumido.

- Minha mãe, contadora de histórias
Nem de longe tenho a habilidade de minha mãe, dona Ema, de contar histórias arrepiantes. Ela traz a tradição latino-americana da narrativa fantástica. Uma das histórias que mais me impressionaram é a do sumiço da minha tia Beth. Diz minha mãe que todos os filhos da minha avó – e mais minha avó Maria – dormiam num quarto que tinha duas portas de madeira maciça. Uma dava para a rua Aroma ou Aurora (não lembro qual delas era a rua dos fundos). A outra dava para o quintal.

Antes tenho de explicar. Essa casa da minha avó parecia um sítio com várias construções. Ficava em Punata, interior de Cochabamba, na Bolívia. A primeira construção abrigava o bar da família (eles produziam uma bebida típica boliviana e os moradores iam comprar lá seu suprimento de chicha – esse é o nome da tal) e os dormitórios onde viviam meus primos. Aí, vinha um pátio que tinha outra construção, mas de dois andares. Nele vivia meu tio Enrique. Ao lado, havia a cozinha “moderna”, ambiente que tinha fogão, geladeira e objetos da modernidade. Do outro lado do pátio havia um espaço aberto e coberto com mesas largas, que era uma espécie de sala de refeições. Cabia muita gente ali. Em frente, a casa onde viviam minhas tias-avós.

Depois, tinha um espaço aberto, onde estavam as construções que abrigavam banheiros e lavanderia. Do outro lado nessa área, um pomar cheio de árvores. Lá, eles criavam pombos e outras aves. Em outro pedaço havia um chiqueiro de porcos – sim, isso mesmo. Eu tinha um medo danado desse lado do grande quintal. Tinha medo dos porcos porque eles eram muito grandes. Em seguida havia a construção em que se faziam as bebidas, com enormes panelas de barro que fumegavam com o líquido que fazia a base da chicha. Logo depois tinha uma região com videiras, das quais nunca colhi uma uva doce (eu devia visitar a Bolívia na época em que as uvas deviam estar verdes). Nessa área, ficava a casinha da minha bisavó, a quem chamava de abuelita Tomasa.

Do outro lado do quintal, nessa região, estava a velha cozinha. Era uma construção escura pela fumaça de muitos anos. As panelas lá eram também grandes e o fogo era alimentado por lenha. Minhas tias gostavam de preparar lá os pratos – a cozinha moderna ficava para os mais novos. Elas se sentavam em banquinhos baixos e ficavam conversando em quéchua, a língua dos incas, enquanto descascavam batatas, debulhavam milho, picavam legumes. Finalmente, no fundo desse largo terreno, que se estendia de uma rua para a outra, ficavam o quintal e área dos cachorros e o depósito de lenha e, à esquerda, no canto desse imenso espaço, ficava a construção onde vivia minha avó e onde se montava um largo presépio no tempo de Natal.

Todas as construções tinham chaves largas e cadeados pesados. As portas que davam para a rua também tinham um grosso pedaço de madeira que era colocado atravessado para impedir invasões. Não havia como sair por essas portas sem pedir que alguém fechasse depois com a tranca pesada de madeira.

Minha mãe conta que uma noite foi acordada pela abuelita Maria, aflita. Ela tinha se levantado para observar os filhos, como fazia sempre. Tinha o hábito de conferir se estavam cobertos, se precisavam de algo. Minha mãe era a filha mais velha.

Naturalmente, era ela a quem minha avó recorria toda vez que precisava de ajuda. Minha mãe não tinha entendido exatamente o motivo da aflição. Então, entendeu. A abuelita Maria perguntava onde estava Beth. A cama da filha do meio estava vazia. A cama do tio Enrique, o caçula, estava apenas com o tio Enrique. Beth não tinha ido tampouco para a cama da irmã Ema. Minha mãe perguntou se ela não tinha saído para ir ao banheiro. Foi aí que se deu conta do mistério. As portas estavam todas trancadas por dentro. A grossa barra de madeira estava lá. O cadeado estava intacto. E a chave ficava com minha avó.

Procuraram por todos os lados. Debaixo da cama, olharam armário, bateram à porta da abuelita Tomasa, cujo quarto ficava próximo ao dormitório da minha avó. Nada.

Começaram a percorrer a casa, o quintal, todas as dependências. Luzes se acenderam. As tias se juntaram. Os filhos, os agregados. Onde estava Beth? O mistério permanecia porque as portas estavam trancadas quando do sumiço da menina.

Minha mãe não conseguia compreender o que teria se passado. Beth e Enrique eram medrosos. Não eram do tipo que se mete em aventuras. Era sempre ela quem tinha de ajuda-los. Daí porque não conseguia imaginar Beth pregando alguma peça. E até porque, para isso, teria de ter surrupiado a chave da própria mãe, mulher vigilante e severa.

Aparentemente, não havia solução. Foi quando abuelita Tomasa decidiu o que deveria ser feito. Minha bisavó tinha como filhas Maria (minha avó, a quem também eu chamava de abuelita, que vivia só com seus filhos), Assunta (casada e mãe de quatro filhos), Raquel (solteira), Rosa (casada e que morava em Cochabamba) e Fausta (que também se casou e teve quatro filhos). Abuelita Tomasa pediu que todas as mulheres cobrissem suas cabeças com véus e que todos os homens se arrumassem. Não sei a que horas da noite tudo aconteceu, mas a família foi em peso à igreja. Falaram com o padre e pediram na mesma hora para que se fizesse uma oração. Tudo comandado por minha bisavó, uma mulher pequena e magra, mas dona de forte personalidade, durona e respeitada. Era uma verdadeira autoridade e na casa era ela quem mandava e desmandava.

Rezaram e depois voltaram para casa. Abriram as portas do dormitório de minha avó, que vinha lamuriosa. Minha mãe cuidava de seu irmão caçula, o medroso Enrique. “Por tudo ele chorava”, reclamava minha mãe. Então, destrancado o cadeado e acesas as luzes viram minha tia Beth, em sua cama, dormindo profundamente. Foi um espanto. Mas minha bisavó não deu muito tempo para que as pessoas comentassem. Resumiu o episódio com uma frase curta: “É preciso rezar mais”.

Interior de igreja, em Punata, Cochabamba, Bolívia

Escrevendo esta história, lembro de minha mãe contando tudo isso quando eu era menina. É muito melhor acompanhar sua narrativa, seus olhos verdes nos encarando para sondar o que se passava conosco durante a descrição dos momentos. Eu a ouvia com meu coração aos pulos. Perguntava, insistia. “Mas o que tinha acontecido? Como tinha Beth tinha sumido? Foi coisa do diabo?”, disparava, com medo de que a resposta para a última pergunta fosse sim. Minha mãe simplesmente dava de ombros. “Não sei como isso aconteceu, mas mostra que é preciso ter fé. A abuelita Tomasa sabia disso”.

Vocês podem pensar que ela inventou isso. Mas nunca se enganou com a história, nem com seus detalhes. Minha mãe continuou contando o episódio mesmo quando eu já era adulta. E contou outras histórias. Não tem como se levantar da cadeira enquanto ela narra.

- O corredor mais bonito do mundo

Li um conto de Gabriel Garcia Marquez que rememoro aqui: “O afogado mais bonito do mundo”. Acho que está no livro de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Se não souberem o que é, procurem. Vale muito a pena. Resumindo, um dia, em uma aldeia à beira-mar, no Caribe, resgatam um cadáver. Era o corpo de um homem muito bonito. Mas tão bonito que todos decidiram dar-lhe um enterro muito honrado. As mulheres choravam diante daquele homem morto e imaginavam como ele teria sido vivo e como deveria ter feito muito feliz sua esposa. Os homens, passados os ciúmes iniciais, se sentiam tristes. Deram-lhe um nome, Esteban.

Eu não vi nenhum cadáver, benza Deus. Mas estava na minha corrida no sábado quando passou por mim um homem alto, magro e de panturrilhas bem torneadas e bronzeadas. A primeira coisa que vi foram as pernas. Correndo ainda, observei o tronco e a cabeleira. Logo deduzi que devia ser coreano. Os cabelos estavam pintados em um tom que não sei definir. Era castanho puxando levemente para laranja, mas bem leve, quase uma sugestão de cor. Coreanos gostam de usar cabelos diferentes. No caso, os fios lisos estavam bem cortados e nem eram tão curtos. Enquanto corria, os cabelos balançavam suavemente.

Foi uma bonita visão. O homem corria com uma bermuda azul e camiseta azul escura. O suor cobria seu pescoço e um pouco das costas. Mas não tinha nada de desleixo. Era suor da corrida. Não consegui ver seu rosto direito, mas percebi os olhos puxados.

Era, de fato, belo. Não tinha visto, até então, um coreano que eu pudesse falar: que homem bonito. E não tinha visto um coreano realmente alto. Os contornos do corpo davam mostras que ele costuma se exercitar. Seu ritmo parecia bastante regular. No entanto, tinha sido aquela a primeira vez que o encontrara no meio do caminho.



Não deu para ver direito o rosto do corredor, mas dele ficou uma bela imagem, que não é esta, diga-se (a foto é só para ilustrar)


Eu o vi mais duas vezes durante minha rotina. Ele devia ter começado bem mais cedo do que eu. Afinal, fiquei um bom tempo no parque movida pelo desejo de correr 10 km, o que cumpri. Não sei se voltarei a ver esse corredor. Nem tenho intenção de falar com ele. Acho mais interessante assim. Vê-lo correr, com seus passos ritmados e suas pernas compriadas bem delineadas e bronzeadas, já está muito bom. Como nunca antes tinha reparado em corredores, ele fica sendo, por ora, o mais bonito do mundo.
Não tinha atinado com nenhum apelido para dar para ele. Até que busquei as referências de “O afogado mais bonito do mundo”. Então, eu o batizo de Esteban.

Como este post tem algo de fantástico, vocês podem pensar que ele, Esteban, não existe. Tudo bem. Pode ser que ele esteja apenas na minha imaginação. Se voltar a encontra-lo durante minhas corridas, eu aviso.




2 comentários:

  1. Gostei da história da sua mãe sobre a tia Beth.

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  2. Valeu pelo comentário, Bia. Outro dia conto mais uma história narrada pela minha mãe. Bjs

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