terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Sob o sol da Toscana. Mas em Santana. Ou... sob o céu de Londres. Mas em Santana

Uma porta é a razão da minha alegria. Uma porta?

Vou explicar.

Há uns bons anos escrevo contos, que mostrei para pouquíssimas pessoas. Alguns dos textos mais velhos estão amarelados em uma pasta antiga. Entre eles existe um em que falo de uma mulher que está para bater em uma porta. Desse ato, três ideias se descortinam. Três destinos. Três finais, todos parecendo ser a real situação vivida pela personagem. É um formato clichê (percebi depois). Mas quando escrevi o conto, no século passado, eu não sabia desses clichês.

Diversas vezes portas são evocadas para abrir a mente para situações misteriosas ou para explorar algo sem explicação aparente. Portas são representações tão comuns daquilo que está por vir que meio mundo já deve ter lido uma narrativa ficcional retratando as expectativas que cercam uma pessoa diante de uma porta. Bem, agora isto não é ficcional. Fiquei feliz por causa de uma porta de verdade, recentemente instalada na minha nova casa.

As portas e o imaginário. Foto: http://www.thedoorswarehouse.co.uk

Há motivos para o júbilo. Faz uns três meses que decidi, após estudar a proposta de um arquiteto, que meu quarto deixaria de ter uma janela para ter uma varanda no lugar. A porta em questão é dessa varanda. Eu não sabia, na ocasião, quanto "sofrimento" ela me traria. Não por causa dela. Mas devido ao tempo que tive de esperar para vê-la montada. Reforma pode ser uma delícia nos nossos sonhos (tudo vai ficar como imaginamos), mas custa muito, e não só no aspecto financeiro. Existe reforma sem que a pessoa sofra um pouco, um bocado, um tanto? 

Confesso que não esperava passar por tanta angústia por causa da decisão de ter uma varanda. Até porque a casa estava em bom estado. Precisava fazer apenas pequenas reformas para que ela tivesse a minha cara. Claro que o mundo sabe que, se uma reforma está marcada para durar um mês, você espera que seja concluída em dois e ela termina em três. Mas vamos lá... havia pouco a fazer. Não estava derrubando paredes. Ops, quer dizer...

Nas últimas semanas lembrei muito do filme Sob o Sol da Toscana. Eu não tinha adquirido uma propriedade como a do longa. Nem precisava fazer tanta coisa assim, como expliquei no parágrafo anterior. Mas tinha hora que me dava um desespero. Na verdade, o desespero começou logo no princípio. Depois que contratei os pedreiros e fiz com que eles e o arquiteto se entendessem, a parede da janela do meu quarto foi derrubada, fato que me estremeceu por dentro. Não foi a parede inteira. Somente uma parte. Porém foi difícil ver aquelas marretadas e não sentir que estavam destruindo o que eu tinha acabado de comprar. Depois que vi a janela arrancada – que foi posta no box do meu banheiro e lá ficou por semanas – tive dúvidas se o plano daria certo. Todos me tranquilizaram. Sim, daria certo e eu teria uma bela varanda.

Quantas angústias cabem numa reforma? (Cena do filme Sol o Sol da Toscana)

O maior problema disso era a porta. O desenho em si da varanda era simples. O material também (ela tem tijolos aparentes). O lance era a porta, que seria de correr, com três folhas: de alumínio branco, de vidro e de tela (porque eu não queria bichos entrando no meu quarto). Um dos pedreiros comentou que em 60 dias eu teria a porta que queria. Quase tive um treco. Tudo isso? O arquiteto e o serralheiro que contratei contestaram: ela ficaria pronta em 15 dias. Suspirei de alívio. Sendo assim, quando eu me mudasse, teria a varanda prontinha.

Ah, ilusão.

Eu me mudei sem ter a varanda. Por sinal, fiz a mudança num caos completo. Era uma semana tumultuada. Estava em um trabalho insano, que me obrigava a só pensar no trabalho. Mal pude arrumar as caixas da mudança. Mal pude ver o que estava sendo despachado. Mal consegui prestar atenção na equipe da transportadora. Ao chegar na nova casa, vindo com as duas gatas que moram conosco (Loony e Lizzy), meu novo lar era um mar de caixas. Mar e torre de caixas. Havia tanta coisa para arrumar que dava desespero. Só que eu não tinha tempo para me desesperar. Meu trabalho continuava insano e eu não podia abrir as caixas e organizar a vida. Deixei de lado por duas longas semanas. 

Também tive de "deixar de lado" o medinho de dormir no meu quarto. Isso porque havia um buraco na parede onde seria montada a porta. Aquele espaço só estava fechado porque colocaram uma folha de madeira (madeirite) no lugar da porta. E por que não havia porta? Os tais 15 dias prometidos tinham se transformado numa espera de tempo indefinido. O serralheiro tinha encomendado material com um fornecedor que simplesmente deu no pinote. Nem o salário dos funcionários o homem tinha pago. E assim, por causa de um caloteiro, fiquei sem porta.

Dias e dias com um improviso fechando minha varanda

Para que eu pudesse dormir no meu quarto improvisaram um tapume. Vivi meus primeiros dias na nova casa como se estivesse no dormitório do Drácula: a luz do sol mal entrava por causa daquele madeirite fechando a varanda. O serralheiro disse que procuraria outro fornecedor, mas pediu-me paciência. Acabaria demorando mais para a porta ficar pronta. E o que eu poderia fazer?

...

Quando morava no Bom Retiro, nos tempos de criança e adolescente, eu achava Santana o bairro mais bacana de São Paulo. Era minha visão da época, uma filha de bolivianos com pais que trabalhavam muito e que não tinham horas sobrando para levar a criançada a dar voltinhas pela cidade. Passeios eram quase sempre os mesmos: casa de parentes (poucos no Brasil), casa de amigos dos pais, zoológico (eba!). Praia era Santos e Guarujá. Família numerosa e de rendimento modesto tem de se adaptar ao possível. Naquele tempo eu não tinha como saber, mas a frase "é o que temos para hoje" cabia perfeitamente ao nosso cotidiano.

Por conta desse meu parco olhar sobre São Paulo, eu achava que Santana era o máximo. Acabei morando no bairro muitos anos depois. Aí, por circunstâncias da vida, ao ter de decidir meu destino, resolvi voltar ao bairro da infância, o Bom Retiro. Adoro a região. Simplesmente adoro. Fui feliz por um tempo lá. Gostava de andar pelas ruas, gostava do Parque da Luz (ou Jardim da Luz), meu parque favorito, gostava do apartamento onde vivia, que tinha uma varanda de nove metros (espetáculo que o velho centro permite). Aprendi a apreciar de outra forma o bairro onde cresci.

Na hora de buscar meu novo lar, tive de trocar o amado Bom Retiro por Santana. É que no Bom Retiro não há casas como a que eu queria: com um quintal onde pudesse fazer uma horta. Quase fui parar na Vila Mariana, bairro onde também morei (na fase adulta, solteira e sem maiores responsabilidades). Lá, encontrei uma casinha na qual cabia apenas um carro na garagem (por mim, tudo bem. Minha família é que dizia "melhor não"), porém tinha um quintal nos fundos. O maior problema, no meu entender, seria o gasto com pedreiros, eletricista, encanador, arquiteto, material de construção... E como ia gastar!

Ao entrar naquela casa fui pensando "reforma aqui, reforma ali, construir um banheiro aqui, ampliar a cozinha..." A mulher falava que, por ela, não sairia de lá, só o faria porque tinha se separado. Ah, meu deus. Fiquei com aquilo na cabeça. A cada visita em casas (na longa demanda pelo meu santo lar), conhecia as histórias das pessoas e me condoía ou simpatizava com a situação. Sou uma esponja nessas horas. Vou absorvendo as memórias de cada um e tentando extraí-las da mente depois para não influenciar minha avaliação. Não nasci com tino para esse tipo de negócio. Ou, então, poderia revolucionar o mercado, vendendo as casas e suas histórias. "Compre esta casa. Você não sabe como foi feliz a proprietária, mãe de dois moços. Ah, ela foi bem feliz. Tá vendo esta janela? Ela acabou mudando esta janela porque o filho mais velho era um danado. Não é que um dia ele resolveu ir para o quintal andando pela parte externa da casa? Hoje, o filho mora nos EUA, é um homem muito responsável e nem lembra disso. Mas ela, a mãe, lembra que por causa do mais velho mudou a janela, que ficou muito mais segura para quem tem filhos". 

Na casa da Vila Mariana, a dona era uma mulher jovem, com um filho de quatro anos. O marido tinha algo de francês porque o moleque tinha nome francês e falava francês melhor do que eu. A mulher também falava toda hora sobre a França. Apesar da simpatia dela, eu estava desanimada com todas aquelas coisas para reformar no interior da residência. Então, cheguei ao fundo da casa. Era uma área com três árvores (uma delas um limoeiro) e muitas plantas. No limite do terreno, havia um espaço que parecia uma lavanderia abandonada. A casa precisava de muito trabalho, só que eu fiquei tentada por causa daquele quintal. Não estava tão longe do metrô e tinha um espaço generoso cheio de plantas! Esse lugar foi o que esteve na minha preferência por um tempo.



Estava pensando se deveria investir naquele imóvel que exigia reformas extremas ou se deveria continua a buscar casas, quando me disseram: "procure em Santana". No começo, até tinha ido ao bairro, mas os corretores me apresentavam casas com os quintais todos reformados. "Olha que beleza. Todo de piso. Fácil de limpar. Como? Você quer plantas? Ah, mas aqui tem espaço para colocar vasos. Pode colocar um monte de vasos. Fica bom". Ficava frustrada toda vez que ouvia esse tipo de comentário. Porém, vi um anúncio de uma casa com uma boa área nos fundos e fui tentar a sorte. Foi assim que encontrei o que queria: uma casa com quintal, com terra, com grama. Meu novo lar tem até jabuticabeira dando fruta.

Não consegui me mudar rapidamente como pretendia. Descobri que eu não sei nada de casa. Não sei mesmo. Não sabia que escolher lustre é algo complexo. Não tinha ideia de que espelho é importante, embora eu não seja fã deles. Por que deveria saber que cotovelo é a mesma coisa que joelho, na linguagem dos pedreiros e construtores? Por que deveria imaginar que tudo que você encomenda é contado em dias úteis e não em dias corridos? A máxima socrática "Só sei que nada sei" nunca fez tanto sentido na minha vida como nos dias de preparativos da nova casa.

...


Bem, na minha primeira semana morando no novo endereço, o tempo se apresentou como se fosse o de Londres. Achei interessante ver Santana sob uma atmosfera brit. Isso me fez recordar de uns dias que passei na capital inglesa junto com a filhotinha e uma sobrinha. Ficamos num apartamento de espaço modesto, mas confortável no térreo de um prédio pequeno, perto da estação de Willesden Green. Era um lugar tão agradável que eu disse que gostaria de viver lá. Numa manhã fria, em que saí para correr, tirei a foto de uma casa dos arredores e postei no FB algo como "queria que minha nova casa fosse assim". Meu novo lar não se parece com aquela casa. No entanto, meus primeiros dias no novo endereço me remeteram diretamente para aquela temporada em Londres. O céu estava cinzento e chuvoso. Para muita gente poderia parecer triste. Para mim, não. Achei mágico.

Os primeiros dias da nova vida em Santana foram cinzentos e chuvosos. Quem consegue imaginar que encontraria lenha e friozinho em plena primavera paulistana?

(Por causa desse tempo, na minha primeira noite dormindo em casa tive de apelar ao edredom. O tapume que fechava a varanda não era o suficiente para barrar o friozinho que veio. Mas estava tudo bem. O clima me agradava.)

Na semana seguinte, o tempo mudou. Ficou quente. As obras e as torres de caixas continuavam atrapalhando meu dia a dia. Era uma tormenta viver naquela bagunça e com o calor que fazia. Os filhotes aceitaram aquilo na boa, de certo modo. Cada um tinha suas obrigações. Eu também. Ninguém conseguia ter tempo de se aborrecer com a zona, embora todos desejassem muito poder curtir a casa com os pés pra cima. Paciência, de novo, era a palavra mais importante.

Mas quando faz calor nesta terra, ah, faz calor. Para ficar no quintal tem de apelar para a sombra. Só assim

Precisei de mais outra semana até conseguir começar a colocar as coisas no lugar. O trabalho tinha se encerrado, no entanto eu ainda precisava me desligar do outro endereço. Em meio a tudo isso, obstáculos surgiram. Qual reforma não foi interrompida por "acidentes de percurso"? Dio santo!

Os dias foram passando assim. Meu canteiro de lavandas ficou pronto (sem as lavandas). Meu canteiro para a horta ficou pronto (sem a horta – toda essa parte "orgânica" eu deixei para fazer quando a reforma terminasse). O aquecedor solar foi instalado (depois de muita bronca) e está funcionando bem. O espelho do banheiro da filhotinha e os novos azulejos ficaram prontos. A troca da rede de água para fazer a lava-louça funcionar também ficou pronta.  Os novos eletrodomésticos, que comprei na Black Friday, chegaram. O granito preto que finalizava a reforma da cozinha também foi instalado. Só a porta da varanda que não vinha.

Com os percalços, meu humor foi variando. Exatamente como o tempo nesse período. Havia os dias muito quentes e os mais frios. Havia dias em que eu me deprimia e outros em que parecia que daria conta de fazer tudo. De novo, as ilusões. Toda hora eu pensava na reforma do filme Sob o sol da Toscana. O engraçado é que o filme passou estes dias na TV paga. Assisti, fiquei animada e depois melancólica. Onde poderia encontrar a alegria que se via no longa quando tudo ia chegando ao fim? Eu não encontrava. Porque parecia que meu "fim" não tinha fim. Tive dias de depressão mais pesada. Alguém já viu uma pessoa ter depressão em dias de reforma? Vinha gente me dizer “calma. Pense que você realizou um sonho: ter a casa que queria, com jardim”.

Era verdade. Eu pensava nisso. Mas quando olhava para o jardim e notava que, de tanta tranqueira sendo levada para cá e para lá (cimento, pedra, bloco, areia, caixas), ele já não estava tão bonito como nos primeiros dias, vinha uma tristeza. E tinha também o fato de o novo membro da família, Bowie, o border collie, detonar aqui e ali os canteiros e algumas plantas.

O jardim estava assim nos primeiros dias da reforma (pacotes de material de construção estavam empilhados na área da churrasqueira). Hoje, ele precisa de cuidados, depois de tantos carregamentos de coisas. Mas tudo bem. A gente se recupera 

Os dias estavam sendo difíceis. Até um dos pedreiros, o que vinha sempre em casa para fazer reparos, sentia aquela angústia pela porta. Tudo se encaixando aos poucos e nada... nada da minha varanda. “Eu falei que seriam 60 dias. Já está chegando a 90”, exagerava. 

Loony, a gata aventureira, observa o mundo atrás da porta, a que me trouxe alegria. Faltam detalhes para dar por encerrada a instalação da porta e assim a varanda ficar pronta

Até que, enfim, ela veio. Chegou tarde. Eram 18h da quinta-feira. O pedreiro já tinha ido embora. Apenas trouxeram a porta. Prometeram voltar no sábado para fazer a instalação. No sábado choveu forte e a instalação não pode ser completada. Agora a porta está lá, esperando a finalização. Minha varanda está quase pronta. No primeiro dia, não me atrevi a abrir as portas (são três, como contei mais acima). E se eu fizesse algo errado? Mas ver aquela estrutura montada, com sua moldura branca, me deu alegria. Não chega a ser como aquela torneira jorrando água no finzinho de Sob o Sol da Toscana. Mas logo estará assim. Quer dizer, a porta não vai jorrar água (#piadinha). Só que vou me sentar na varanda e escrever um texto ou rabiscar um desenho sobre qualquer coisa quando estiver lá, com as pernas soltas no espaço. 

Estou esperando esse momento. Já não é tão angustiante como foram os dias de novembro e o início deste dezembro. Enquanto isso, aproveitei uma bela manhã de sol no jardim para batucar estas letras. Desde o primeiro instante em que botei os pés nesta casa fiquei sonhando com a hora em que estaria no jardim escrevendo algo diferente das minhas demandas profissionais. Pois aqui estou, diante do gramado, sentada no meu banco de madeira de demolição vendo o Bowie fazer peraltices inocentes pelo jardim. É uma hora feliz. Ah, não! Ele atacou um canteiro. Mais um canteiro no currículo dele. Bem, nem todos os sonhos são perfeitos.

Ainda tem muita coisa para arrumar. Blocos de concreto, por exemplo, servem para proteger as plantas do lado "jardineiro" do Bowie. Tenho certeza que ele tem planos mirabolantes na cabeça para melhorar o jardim. Só não entendo quais são

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