quinta-feira, 31 de maio de 2012

Sobre teimosia e reinações


Eu era adolescente. E, apesar de ter sido uma boa menina a maior parte do tempo (era obediente e tranquila), tinha minhas teimosias. Uma delas tinha a ver com roupas. Sou a filha mais velha e, de certa forma, me habituei a ser produzida pela minha mãe. Ela deve ter feito muitos ensaios comigo na minha fase de criança pequenina. Bota fita, tira fita, faz trança, penteia para cima, coloca vestido de babadinhos, conjuntinho de uma cor só... Devo ter sido um bom laboratório, até que veio outro filho, e aí uma filha, e um filho...

Bem, em casa somos em sete filhos. E sempre numa escadinha que, por tempos, governou minha ideia de como vinham as crianças ao mundo. Primeiro menino, depois menina e assim ia intercalado. Afinal, foi desse jeito que aconteceu com meus pais.

Mas eu dizia que minha mãe escolhia as roupas. Eu acatava. Frequentemente sem espernear - mesmo odiando por anos um conjunto laranja com bordados em tons de marrom nas barras das calças e do bolero (eu me sentia uma toureira). Reforço. Não era de ficar chiando. Até porque dona Ema não gostava de frescuras. "Ah, vai ficar choramingando? Então, toma cá um motivo de verdade para choramingar" – e vinha safanão, chinelo...

Os tempos eram outros. Não se esqueçam.

Uma ocasião minha mãe me avisou que iríamos a uma festa de aniversário. A filha de uma amiga sua (boliviana) estava fazendo 15 anos e haveria bolo, salgados e uma turma de adolescentes para comemorar. Não sei se minha mãe queria agradar a amiga ou se imaginava que eu iria me entender com a moçadinha. Eu devia ter 13 anos. Ainda não usava óculos, o que passei a fazer com 14 anos. Ainda que as intenções de dona Ema fossem boas, a proposta não me agradou nem um pouquinho. Primeiro porque eu não conhecia bem a aniversariante. Segundo porque eu não tinha a menor ideia de como seriam esses adolescentes.

E aí veio o motivo maior para eu detestar a proposta da minha mãe. Ela escolheu a roupa e o sapato para mim. A mulher gostava de fazer isso. Dona Ema devia estar sonhando como eu faria bonita figura na festa. Só podia ser sonho mesmo. Vale esclarecer que minha mãe é vaidosa, do tipo que passa batom para ir ao supermercado. Eu sou quase seu oposto. Sou do tipo jeans e camiseta. Simples e confortável. Essa sou eu.

Para resumir a história, minha mãe escolheu um vestido verde que tinha aplicações na barra com flores vermelhas e brancas. Fosse hoje, aposto que um monte de mulher ia achar cool o vestido. Algo vintage. Qualquer coisa do gênero. Para acompanhar, meia calça branca e um sapato que deveria ser um precursor (avalio hoje)! Dona Ema comprou na Zapata, na Cásper Líbero (quem entender, dou um doce), um calçado que tinha o corpo de tênis (vermelho) e plataforma branca. Convenhamos, esse modelo tênis/plataforma existe por aí. Meio modernete. Ou era modernete na temporada passada (vi vários, agora não). Como se vê, minha mãe era uma mulher a frente do seu tempo. Mas, como aprendi com o Silvio Meira, nem sempre isso é legal.

Se bem me recordo, protestei. Como é provável, minhas queixas foram rebatidas com algum comentário no estilo: “Use isso aí e vamos logo”. Fui com minha mãe à tal festa e não disfarcei que estava absolutamente emburrada. Além disso, decidi me vingar. Meu grau de interação com as outras pessoas seria zero (em protesto pela roupa que usava). Revenge!

Entrei na casa. Dei o presente (que, na verdade, era um presente que EU tinha recebido, mas como minha mãe fora avisada da festa de última hora – e não teve tempo de comprar nada – ficou resolvido que ela pegaria o meu presente e o daria para a “debutante”). Fiz os cumprimentos de praxe e... Divisei uma estante nos fundos e fui direto até lá, ignorando os adolescentes dançando no meio da sala.

O que tinha lá? Livros de Monteiro Lobato. Basicamente, "Reinações de Narizinho" em volumes largos, compridos. Não me esqueço do tamanho. Peguei o volume 1 e sentei-me numa poltrona. Simplesmente comecei a ler. E assim fiquei a festa toda: lendo. As pessoas dançavam, minha mãe olhava pela fresta da porta da cozinha e desse modo a tarde avançou (a festa era de tarde) até chegar a noite. 

A versão que eu conheci primeiro foi esta: da editora Brasiliense

Os adolescentes pediram para que as luzes da sala não fossem acesas para que a festa continuasse legal (a maioria dançava). Concordaram. Eu permaneci lendo no escuro. Minha mãe, coitada, me chamou. “Não cansou de ler?”. Eu não tinha cansado. O livro estava ótimo. Por outro lado, eu promovia minha vingança. Dona Ema não fez mais comentários. Pediu que eu comesse algo. Recusei. Perguntou se eu não iria conversar com os convidados. “Estou ocupada, mãe”. E voltei ao meu livro, que eu largara na poltrona. A escuridão veio, mas havia uma luz no corredor que me dava uma iluminação como se fosse de vela. Um garoto se aproximou.

- Oi. O que você está lendo?

- Reinações de Narizinho. A personagem do Sítio do Picapau Amarelo.

- E você gosta?

- Sim, claro. Se não gostasse, pegaria outro livro.

- Mas você gosta de ficar numa festa lendo livro?

- Para mim, está bom. Não estou interessada em dançar.

O garoto se foi. Prossegui na minha leitura. Minha mãe veio falar comigo outra vez e comentar, como fez em inúmeras noites desde minha adolescência: “desse jeito você vai comer seus olhos”. Reclamava do meu apego ao livro naquela penumbra.

Assim foi, por conta de uma teimosia da minha parte, que Monteiro Lobato entrou na minha vida. Não tive meios de ler toda sua lavra. Algumas coisas eu li. Como A História do Mundo para Crianças, em que Dona Benta é a narradora, explicando acontecimentos que estão entre os principais pontos de uma aula de história global. Nessa vez, perguntava como não davam esse livro para os estudantes aprofundarem seus conhecimentos. Havia tanta informação que ajudaria muita gente a entender o mundo em seus primeiros anos escolares.

O livro que eu tenho não é assim: é de capa dura azul, sem ilustração

Certamente, fui impactada pelo programa Sítio do Picapau Amarelo, da Globo. Até me vem à memória que, quando meu pai comprou nossa primeira TV que exibia cores, ele ligou o aparelho e estava passando o Sítio. Foi incrível a sensação. Estava saindo do preto-e-branco e entrando na telinha colorida. Achei o sítio muito mais legal.

Depois do meu episódio na festa adolescente e após a série da Globo, só voltei a Monteiro Lobato na época do colegial, quando estudamos o Modernismo e o artigo “Paranoia ou Mistificação”, sobre as telas de Anita Malfatti. A polêmica foi tanta que disso nasceu a Semana de Arte Moderna. Espero que isso não tenha sido esquecido por ninguém aqui.

Não sou conhecedora habilitada da obra de Monteiro Lobato, mas o reconheço como um dos grandes talentos da literatura brasileira. O que ele fez pelo gênero infantil basta para colocá-lo em destaque entre os maiores escritores desta terra. Dizem que era reacionário. Pode ser. Não estudei, porém. Não me atreveria a fazer esse julgamento sem me debruçar no estudo sobre Monteiro Lobato. Creio que, de todo modo, não se deve julgá-lo como um homem de nosso tempo. Seria injusto. Mas um dia gostaria de estudar mais a respeito. Hoje não tenho opinião.

Oito quilômetros

Quando decidi que ficaria em Monteiro Lobato, a cidadezinha ao pé da Serra da Mantiqueira onde fiquei para descansar, conforme conto no post anterior, escolhi também por causa do escritor. Sabia que o sítio que gerara o Sítio do Picapau Amarelo estava nas cercanias. Queria visita-lo.

Eu estava me locomovendo a pé por Monteiro Lobato e por São Francisco Xavier, para onde fui também. Distâncias precisavam ser calculadas. Já disse antes: sou boa andarilha. Não me assusta uma longa caminhada. O único que ponderava mesmo era o horário porque eu dependia do sol para andar em segurança.

No dia que escolhi para visitar o sítio acabei entretida com meus livros. Não saí no horário mais adequado. Escolhi uma roupa, calcei um All Star e peguei a estrada entre a pousada onde fiquei (Geka’s, muito legal) e o centro de Monteiro Lobato. De lá, partiria num táxi e voltaria para a cidade a pé, fazendo um percurso no retorno de 8 km (e ainda teria na volta de fazer mais 3,6 km até chegar à pousada).

Isso foi minha ideia inicial. Quando o táxi me deixou no Sítio, eu tentava pensar com otimismo no meu retorno. Seriam 8 km em uma serra serpenteante!!! O motorista insistiu: quer que eu volte? Basta me ligar. Agradeci o taxista, muito gentil. Eu estava disposta a encarar, embora não saísse da mente a subida que teria de enfrentar no meio do caminho. 

Aqui, o lugar onde nasceu "Urupês"

Na entrada, havia um pequeno atelier com trabalhos artesanais. Estava com ar de abandonado, mas compreendi que não havia muita gente ali no Sítio. Procurei uma recepção. Não havia. O jeito foi andar ao redor da casa principal, entre patos e galinhas zanzando por ali. Bati com as palmas das mãos para chamar atenção. Havia um certo silêncio. De repente, surgiu um homem, que parecia ser empregado do Sítio. Ele pediu que eu desse a volta e esperasse na escada grande o surgimento de dona Maria Lúcia, a dona.

Foi desse modo que ele disse. A dona. Seria parente de Monteiro Lobato? Não sabia. Esperei por ela, separando já os R$ 5 cobrados pelo passeio (com direito a guia). O homem que me recebera apareceu de novo e disse que havia um grupo de pessoas que tinha ido à cachoeira e que dona Maria Lúcia os aguardava. Não estaria eu disposta a ver primeiro a cachoeira?

Achei o máximo. Claro. Lá fui eu, seguindo o homem, que falava com interesse comigo. Na cachoeira, comentou, Monteiro Lobato escrevia seus livros. “Foi lá que ele escreveu Urupês. E teria começado a escrever Reinações de Narizinho”. Perguntei se a cachoeira não era a do Reino de Santa Clara. O homem me corrigiu com delicadeza. Reino das Águas Claras.

- Verdade. Desculpe. Eu me confundi – respondi, sentindo-me um tanto aluna de um sujeito que parecia ser o peão do Sítio.

Ele me conduziu até uma trilha, de onde via um monte de vacas pastando. Orientou-me como chegar à cachoeira e me deixou para cuidar de seus afazeres. Mal adentrei aquele pedaço de mata, ouvi o rumor das águas correndo. Bateu vontade de mergulhar os pés naquela cachoeira. Ela não é grande, mas parece ser uma escada, com seus degraus cobertos de água descendo em uma cascata nem tão clara assim quando chegava no chão. As piscinas juntavam um pouco da terra, deixando tudo meio turvo. 

O Reino das Águas Claras é assim. Dá para entender por que inspira?

Mesmo assim, tirei meias e tênis e entrei na água. Foi uma delícia aquele contato gelado. Olhava a cachoeira e pensava que Monteiro Lobato também deveria ter entrado ali. Fiquei alguns minutos ali. Há um banco construído à margem. Devia ser para o escritor elaborar suas histórias. Ou foi feito depois para que as pessoas apreciassem a natureza. Não sei. Não me sentei.

O retorno foi tranquilo, exceto por um peru que estava todo exibido e fazendo glugluglu de forma assustadora. Confesso que tenho medo de peru. Esperei um pouco para ver se ele saía do meu caminho. O bicho continuava “gluglulejando” e eu começava a me preocupar com o horário. Acho que fiquei cinco minutos esperando até que me enchi de coragem e inflei o peito para ficar ainda mais impressionante do que o peru. Ele captou a mensagem, percebeu que sou mais forte e se afastou. Na sequência, conclui que eu consigo ser bem patética. 

O peru exibido: era ele ou eu. Por pouco perdi

No alto da escada, esperando por dona Maria Lúcia, comecei a fazer anotações em um caderno que tinha levado comigo. Anotava o ano de construção da casa, por exemplo: 1870. E anotava os tais 8 km que teria de vencer quando ela abriu a porta. Nós nos apresentamos, entramos e paramos numa sala – a casa tem 18 cômodos.

A construção é de 1870. Teria sido erguida por escravos e peões, com algumas peças trazidas de fora

A primeira pergunta que dona Maria Lúcia me fez teve a ver com São Francisco Xavier. Creio que me sondava para saber se Monteiro Lobato tinha sido aquela opção “já que não tem jeito...”. Respondi prontamente que tinha interesse em conhecer a cidade. E em conhecer o sítio. A segunda pergunta: por que?

- Conheço um pouco da obra. E ele era um grande escritor. Gostaria de conhecer o ambiente que o inspirou a criar Emília e Pedrinho – disse. Imediatamente acrescentei “Narizinho”. Não sei a razão. Achei que talvez devesse citar a menina do nariz arrebitado como forma de prestigiá-la.

Dona Maria Lúcia parou diante de um móvel e desfiou a falar que o brasileiro não dava atenção para a cultura, que não valorizava um de seus maiores escritores e um dos nomes da literatura infantil no mundo. Disse algo como Monteiro Lobato ter sido uma vez ovacionado em Buenos Aires... e aqui, nada. Falou de como as pessoas se ligam mais à TV, deixando de conversar entre elas e dando valor demais a coisas supérfluas ou invenções que, de verdade, não fariam falta a ninguém se houvesse mais diálogo entre todos. E acrescentou que parte desse comportamento, com a juventude desinteressada, se devia ao pouco apreço que o brasileiro dá à educação. Preferem carros a boas escolas e etc. Fiquei, claro, muda, ouvindo tudo e respeitosamente concordando com a cabeça. Em seguida, dona Maria Lúcia, veio com esta:

- Por isso, fico feliz de ver uma mocinha como você querendo conhecer mais de Monteiro Lobato.

Permaneci em silêncio. Estou muito longe de ser mocinha, mas não poderia derrubar sua esperança na juventude. Ou melhor, não queria.

A partir daí, ela me mostrou a casa. Primeiro o salão para “debates políticos”. Não era propriamente isso, só que eu não anotei nada. Dona Maria Lúcia falava do material usado para erguer a casa: pinho de Riga, peroba rosa e tantas outras madeiras nobres, que hoje são proibidas de se usar. De fato, a construção está em bom estado para um prédio de 1870.

Monteiro Lobato, que nasceu em 1882, viveu lá entre 1911 e 1917 e passou por momentos nada agradáveis, com vários problemas de agricultura. A fazenda lhe dava muito trabalho. Mas ele aproveitava para escrever também. No salão dos debates havia uma saleta que ele apelidou de sala do Saci. Quis saber a razão. “Era para que as crianças não entrassem ali e mexessem em seus livros e papeis”.

Sala do Saci, a área de trabalho de Monteiro Lobato: à prova de crianças

Fomos para seu quarto, que dava acesso a dois quartos internos, sem janelas, onde dormiam as mocinhas da casa. Vigilância paterna cerrada. Elas só poderiam sair de seus quartos se passassem pelos pais.

Em outro cômodo, dona Maria Lúcia mostra-me o catre dormia tia Nastácia. “Os escravos não dormiam em camas. Era praxe que eles se deitassem sobre palha e feno. Mas Monteiro Lobato providenciou catres para quem dormia na casa. Um destes dois catres pertenceu à tia Nastácia”.

Um destes catres foi de tia Nastácia

Poucos móveis restaram do tempo de Monteiro Lobato – há ainda um armário que pertenceu à tia Nastácia, uma roca e algumas camas. A maioria estava muito mal conservada, relatou dona Maria Lúcia. Aliás, ela não tem parentesco com o escritor. Cansado dos gastos com a fazenda, ele tinha vendido a propriedade, que foi adquirida por um antepassado de dona Maria Lúcia. Ela vive lá hoje e ciceroneia todos os interessados em conhecer o sítio.

Quero registrar, dessa visita, o quarto do Visconde, cômodo reservado para os visitantes mais velhos. A cozinha, que apresenta grandes tachos para preparar comida, e uma despensa repleta de doces caseiros.

Fui embora agradecendo a atenção. Dona Maria Lúcia demonstrou satisfação em ter me atendido. Afinal, eu tenho alguma informação. Despedi-me e saí sem comprar um pote de almoço, levando apenas uma boneca Emília feita por artesãs da região. Expliquei para ela que não queria carregar mais peso porque imaginava que isso iria me custar um bocado na hora em que estivesse subindo a serra a pé. Ela se apiedou. Perguntou se podia perguntar a uma família que tinha acabado de chegar se eles teriam como me dar carona até a cidade. Achei simpático da parte dela esse cuidado. Respondi que não me incomodaria com sua intervenção, mas que iria embora naquele instante. “Nem sei se eles vão para Monteiro Lobato”, e ajeitei-me para encarar o caminho de volta.

- Eu vou perguntar. Talvez dê certo. Eu digo que você é uma boa moça. Vamos ver seu mérito – disse, sorrindo. 

Meu mérito

Peguei a estrada. Botei os fones de ouvido. Tirei mais algumas fotos. E segui minha trilha. Em dado momento, percebi nuvens de chuva se aproximando. “E essa agora”, falei comigo. Acelerei meus passos. Voltei a cantar em voz alta. “Favola”, do Eros Ramazzotti, eu repeti duas vezes. Os pássaros e outros bichos do entorno devem ter se espantado. Mas fazia sentido. A música é uma fábula.

No caminho do Sítio para a cidade, a gente tem esta vista de Monteiro Lobato

Estava por volta do km 2 da minha caminhada e comecei a lamentar a escolha do tênis. Adoro All Star. Adoro. Mas não é legal para fazer trilha. Nem mesmo quando a trilha é asfaltada. Estava recalculando a hora que chegaria na cidade (acelerava para pegar chuva, mas sentia o tênis “pegando”, o que atrapalharia o desenvolvimento de velocidade). Então, um fusca parou ao meu lado e ouvi uma buzina. Era um dos homens que trabalhava para dona Maria Lúcia.

- Quer carona?

Topei, claro. Ele estava indo com a mulher e seus três filhos para São José dos Campos. Estava de folga. Vivia no Sítio e tinha me visto lá. Na hora em que estava entrando em seu velho fusca, dona Maria Lúcia comentou “tem aquela menina que está indo a pé para Monteiro Lobato”. Menina?! Eu ri, sem desvendar a verdade e sem comentar que a senhora exagerava ou precisava consertar os óculos. De todo modo, que gente boa! Minha teimosia lá do passado, dos meus 13 anos, valeu muito a pena.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Like Forrest Gump. Ou ‘meu rosto está verde’?

Não sei por que a gente faz isso, mas basta estar de férias em um lugar diferente que o espírito caminhante avança corpo adentro e você acaba andando dez vezes mais (20? 30?) do que faria num dia normal. É sempre assim. Ao menos comigo.

Estou recolhida por uma semana para botar o corpo e a mente para descansar. Bem, o corpo não está descansando exatamente. A mente? Acho que sim. Trouxe dois livros e mais o iPad. Estou lendo dois livros ao mesmo tempo. Um de papel. Outro, virtual. Isso ajuda a relaxar. Deve ser por isso que tenho vontade de escrever. Vem um monte de letrinhas doidas para preencher o espaço vazio.

Se alguém perguntar se isso é descansar, respondo que sim. Para mim é. Não sou do tipo que abandona a tecnologia. Não quero. Gosto de estar conectada. Isso é parte do meu dia-a-dia. Faz parte de mim. De verdade. Estar conectada não é algo que o trabalho me obriga. Nada. Gosto disso como gosto de andar. Está em mim.

Explicado esse ponto, vamos ao relato de uma quinta-feira nada atípica. Aliás, estes dias não têm nada de típicos. A começar pelo fato de que estou sozinha na pousada. Não é engraçado ter um hotel só para você?! Pensando bem, não. Lembrei agora de “O Iluminado”. Na noite de quarta, por exemplo, fiquei brincando de acender luzes na parte da pousada que habito: o segundo andar de um bloco de apartamentos novo, bonitinho e bem aberto. Pois fui acender a luz de uma ala que nada tinha a ver comigo. Fui acender apenas, como uma criança curiosa. E do teto saiu voando um pássaro. Ou dois. Não tive certeza. Mas gritei e saí correndo como uma criança medrosa. Eu me assusto com seres voadores (na terça-feira desta semana, por exemplo, gritei alto porque um morcego deu um rasante sobre mim e sobre a Laura, na noite do futebol feminino, na região da Barra Funda, São Paulo, capital).


Esta é a pousada onde resolvi me isolar


Depois do susto do pássaro (opa, outra reminiscência do cinema, desta vez Hitchcock), fiquei esperta. Não estou mais explorando espaços que não me dizem respeito. Sou medrosa. Pela madrugada, ouvi sons cuja origem não consegui identificar. Não os temi. Mas ao escutar um bezerro mugindo eu me arrepiei. Coisa mais besta se assustar com algo que a gente sabe o que é.

Estar sozinha numa pousada te faz acelerar fantasias. Aumenta o poder da imaginação. Ouvi o latido de Zulu, o dog alemão preto que toma conta do pedaço. Não parecia ser nada demais. Apenas uma advertência. Não adiantou falar desse jeito para mim. Fiquei com o ouvido apurado. E se fosse um serial killer invadindo a pousada?

Zulu, o guardião. Intimida, não?! Mas ele é um doce. Gigante, mas doce

Felizmente, uma hora eu dormi. Acordei às 6h30 e fui conferir a janela. Névoa. Neblina. E um frio de congelar ossinhos. A visão me trouxe a memória um comentário de uma irmã minha quando estivemos em São Francisco de Paula (RS), num inverno. A pousada tinha outros hóspedes, mas eram pouquíssimos. Em dado momento do começo da noite, no breu, o dono enviou alguém para entregar mais toalhas para a gente. Minha irmã pulou da cama com as batidas na porta. Olhou pra fora e disse: “Parece Silent Hill”. Lembrei disso na hora em que me estiquei na janela para conferir o tempo na manhã da quinta-feira.

Meio Silent Hill, mas os mugidos das vacas ali por perto me trouxeram de volta à realidade. Chequei o relógio. Não era cedo para correr, dentro dos meus parâmetros. Mas a neblina não me entusiasmou. Voltei para os dois edredons que me protegeram na noite.

A quinta-feira amanheceu assim (algumas das fotos estão no molome.com/lecastel)

Tomei meu café e estava esperando o momento que sairia para correr. Estava calculando quando voltaria porque precisava me organizar para pegar um ônibus rumo a outra cidade que fica nas cercanias (meta do dia). A pousada onde me encontro dista pouco mais de 3 km do centro. Um exercício interessante. Ou seja, para estar às 11h na rodoviária eu teria pouco tempo para correr, voltar, tomar banho e partir.

Claro que não deu tempo.

O café da manhã demorou um pouquinho (acho que não acreditaram que eu estaria às 8h em ponto no salão). Mas tudo bem. Fiquei conversando com a moça da pousada. Falamos sobre aprender idiomas. Ela estuda inglês, embora não curta (“as letras não têm nada a ver com o que se fala”), e gostaria de retomar os estudos de espanhol. Enquanto isso, Zulu nos assistia e fazia cara de pidão. Queria uma rosquinha.

Run, Forrest

Estava tudo muito bom (inclusive o café), mas eu estava de olho no relógio. Esperei 40 minutos entre o fim do café e o início da corrida. E parti. Na estrada, os primeiros metros foram tranquilos. Tinha de sair de lá e pegar outra estrada asfaltada, mas quase sem movimento.

Logo percebi que o café da manhã pesava. Não tinha comido nada demais, mas correr com o estômago ainda cheio não dá certo. Foi o que senti quando peguei a primeira subidinha. Estou no pé da Serra da Mantiqueira. Seria normal pegar subidas. E normal sentir o esforço. Ruim foi sentir o esforço com o “peso” me atrapalhando (em Buenos Aires, quando corri meia hora depois do almoço, quase vomitei; péssima experiência).

Fui avançado pela estrada com vontade. Às vezes parava parar tirar uma foto. Fora isso, eu me via como Forrest Gump, correndo no asfalto. Espero que se recordem dele no filme correndo sem razão aparente.

Run, Forrest (crédito Photobucket)

Tinha metido um boné para me proteger do sol. Estava com celular e chave nos bolsos da calça. E mais o Nike Plus (além do Runkeeper funcionando no Nokia: queria que o GPS fizesse um mapa). Em alguns trechos tive de me esforçar legal. Não apenas porque era subida, mas porque era uma curva fechada que não oferecia muita visão para o motorista. Ou seja, havia chance de vir um louco acelerando e, sem me enxergar, me acertar. Nessas curvas, eu desligava o som e prestava muita atenção para perceber se vinha carro. E acelerava na corrida.

Um registro no meio do caminho. No molome escrevi: "cuidado com as vacas" (para fazer comentários na foto, clique aqui)

Eu corria e pensava se algumas das poucas pessoas que cruzaram por mim não estranhariam esta mulher de boné, camiseta agarrada ao corpo (dry fit) e calça esportiva subindo a serra a pé em vez de estar num carro, numa bicicleta ou num cavalo. Chegou um momento que pensei que deveria ter posto o short ou a bermuda de ciclista tamanho calor sentia. Meu corpo estava quente, o que me fez dispensar no primeiro quilômetro a blusinha que tinha posto por causa do frio. Transpirava. Detesto suar. Não me agrada nada sentir gotinhas na nuca, nas têmporas e nos fios do cabelo. Menos ainda no rosto, especialmente se esquento tanto que embaça os vidros. É que eu uso óculos. Corro de óculos. Sou míope de 4 graus. E tenho pavor de lente de contato e de cirurgia.

Ocorria-me, de vez em quando, que alguém poderia perguntar na estrada por que corro. Tá treinando? É diversão? Começou agora? E lembrei que o Forrest Gump correu do nada e foi indo... e as pessoas o seguindo. Você corre pela paz no mundo? Ele nada respondia.

Bem, corri quase 7 km. Teria corrido mais se não fosse o relógio. Ao voltar para a pousada calculei que não daria mais tempo de pegar o ônibus no horário pretendido. Tinha mais de 3 km de caminhada pela frente. Tomei meu banho devagar. Até cantei no chuveiro em alto e bom som. Eu estou sozinha! “Mangueira, teu cenário é uma beleza que a natureza criou” (conhece essa música na voz de Elizeth Cardoso? Não? Experimente um trechinho: avance para 1min23 neste vídeo).

Vamos contando: até o centro desta cidade no pé da Serra da Mantiqueira foram pouco mais de 3 km. O Runkeeper assinalou , na verdade, uns 4 km, mas o povo daqui falou que eram três. Enfim... Da pequenina rodoviária peguei o ônibus “circular” e paguei menos de R$ 2,75 para ir até a cidade vizinha, que dista cerca de 20 km do “meu pedaço” e está mais no alto. Viajei de pé (ônibus lotado). A viagem levou mais de meia hora porque a estrada é muito sinuosa. De novo, subidão. Pensei se poderia fazer esse caminho a pé. Sim, mas não correndo. Deve ter gente que completa esse desafio. Estou longe disso.

Depois de bater perna pela rua principal da cidade do alto e subir três vezes essa avenida (por erro de cálculo e de informação), decidi parar num restaurante chamado Seu Xico e comer uma refeição muito boa. Já era tarde (15h15 quando dei a primeira garfada na truta com cogumelos que pedi). Ainda fiz uma horinha para não me sentir mal na estrada. Isso porque eu iria fazer um caminho para ver uma cachoeira. A mulher tinha dito: são 3 km. Em uma hora você chega lá. Se andar rápido, chega antes. Ora, andar rápido é meu nome.

Lá fui eu, pela estrada afora. Assim que pisei no chão de terra, veio uma imagem nada atraente. O relógio marcava pouco mais das 16h. E se a escuridão me pegasse no caminho? E se a cachoeira estivesse numa mata tão fechada que, ao chegar lá, o manto da noite me cobrisse? E se eu fosse atacada por bichos? Primeiro bicho em que pensei foi o homem (medo!). Em seguida foram insetos chupadores de sangue (terror!). Ou insetos voadores (pânico!). De novo acelerei os passos.

Obviamente fiz em menos tempo a distância entre a praça central e a cachoeira. Menos de uma hora se andasse rápido? Bah. Fiz em meia hora. Desconfio dos 3 km. A distância pode ser maior. Quando você está no interior, a tendência é minimizar as coisas. Recordo de uma vez, na região de Visconde de Mauá, no lado mineiro, ter perguntado a um “minino” (tem de escrever assim, como se me inspirasse Guimarães Rosa), se o poço das Antas ficava longe. Ele respondeu: “é pertico”. Não saiu do alto da cerca onde se encontrava sentado. Apontou a direção. Disse para subirmos na trilha onde estavam as vacas (“aquelas ali”) e falou “meia horinha”. Pois sim: levamos uma hora para chegar ao tal poço das Antas, de água tão gelada que foi impossível entrar nela (sacaram por que se chama “das Antas”? As antas éramos nós). 

Voltando à serra dos tempos atuais: acho que dá pouco mais de 3 km entre o centro e a cachoeira Pedro David, mas não poderia dizer. O Runkeeper não tinha como funcionar porque a Claro simplesmente não existe na cidade. No phone, no apps. Para usar celular lá, só Vivo ou TIM. Cadê as marcas para ativar essas “propriedades” no município de SFX?! E o Festival da Mantiqueira estava para começar!!!

Meu destino: Pedro David


Sozinha

Pedro David... por que alguém deu esse nome à cachoeira? Não havia viva alma para perguntar isso quando cheguei à cachoeira. Aliás, tive medo (de novo?! Covarde, covarde!). Entrei na área preservada – e anunciada como tal por todos os lados. Vi um cartaz proibindo práticas religiosas no local (perdão, ninfas da água e elfos da floresta... não poderia fazer oferendas. Sorry, fadas). Vi um monte de coisas. Mas gente? Ninguém. Desci o trecho sinalizado com a placa “Cuidado. Risco de queda”. Parecia meu pai dizendo muitos anos atrás: “mas você não pode dirigir. Não controla o carro direito. Não sabe usar os freios. Você vai acabar se matando”.

Sim, desci com os sentidos em alerta. Tinha desligado o som. Não queria distrações. E se de repente um urso grunhisse no meio do mato e... Tá bom, tá bom. Não temos ursos por aqui. Desci com cuidado a trilha sinuosa e perigosa (os dizeres “risco de queda” não saiam da cabeça).

E com vocês: Pedro David. Prazer

Como eu imaginara, ali estava mais escuro. Mas daria para voltar para a praça central com luz do sol ainda. Poderia relaxar um pouco, não?! Então, vi a ponte que leva para o “meio” da cachoeira. Estava bem feita e tal. Só que veio de novo o temor. Se ela caísse, teria de dizer adeus ao mundo. A queda, creio, não seria fatal. Mas a força das águas me levaria para adiante e eu sumiria na mata sem poder me despedir dos que amo (nessas horas vem o pensamento “por que não fiz um testamento?”; não é que eu seja catastrofista). Calma, a ponte não tinha nada de cenário de Indiana Jones. A cabeça, porém, já estava inundada de fantasias e imaginação. 

Encarei a ponte, fiz fotos, apreciei o visual. E ouvi um ligeiro “crack”. Não sei de onde veio. O coração parou um pouquinho. Olhei para a madeira da ponte. Parecia normal. Olhei em torno. Bicho do mato nenhum surgiria para me amedrontar – eu possivelmente os assustaria. Mas e se tivesse um homem malvado, cruel, vil... o tal serial killer que minha mente criou na madrugada? No final das contas, não era nada. Ou talvez fosse uma ninfa querendo oferenda.

Ouvi um "crack" e me deu um medinho. Sou covarde

Peguei o caminho de volta e me preparei para os 3 km de estrada, às vezes poeirenta, a maior parte das vezes solitária. Transpirava e eu usava uma toalha que carrego comigo para atividades físicas outdoor. Era o caso. Foi útil. Botei os fones e fui andando. Mais uma vez, cantei alto. Não tinha ninguém na estrada. Ou quase. Uma hora cruzei com um cara empurrando bicicleta ladeira acima. Disse “boa tarde” e continuei a cantoria, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Desde o instante em que o percebi na estrada, notei como me encarava.

Deveria estar com o rosto pintado de verde. Todos esses dias. Impressionante como sentia os olhares. Tinha momentos que achava que deveria estar com o som muito alto, embora os fones sejam daqueles que diminuem essa possibilidade (abaixei o volume várias vezes nestes dias de isolamento). Quando desembarquei em SFX, fiz uma pergunta ao motorista, que reencontrei verificando os pneus do ônibus, após minha voltinha pela praça. Agradeci a resposta e fui andando. Ele veio atrás de mim:

- É daqui?

- Não.

- Veio neste ônibus?

- Sim (e balancei a cabeça dando a entender “cumprimento e me despeço”).

Ele retomou a carga.

- Mas de onde é? Posso perguntar?

- Sou de São Paulo – respondi, afastando-me mais alguns passos (mantive o sorriso, porém; que horror ser antipática).

- Ah, desculpe. É que sou mineiro. E mineiro pergunta... Vai voltar para Monteiro?

- Não sei a que horas. Obrigada.

Era isso. Eu tenho cara de São Paulo. Devo ser como um extraterrestre. Ou como gente estressada que fica louca com o trânsito, xinga meio mundo e desconta no trabalho, onde fica trancada por horas remoendo a raiva do planeta. Deve ser assim que pensam nos paulistanos. Quando disse na pousada que vinha descansar, me olharam um pouco com piedade um pouco com um ar conformado: és um ET. Quando falei que queria correr na estrada, então cravaram. Sou de outro planeta. Um planeta em expansão, é verdade. E ao dispensar a bicicleta porque gosto de caminhar, pronto. Estava sacramentado. Eu não tinha jeito.

Ou isso ou nunca viram uma filha de bolivianos. Como a cor da Bolívia é verde – e eu sou palmeirense –, insisto: meu rosto deve estar pintado nessa cor.

Um companheiro na estrada

Meu pensamento se perdia nessas ideias quando cruzei com mais dois garotos de bicicleta. Bingo! Eles ficaram me olhando. Naquele instante não estava cantando alto. Ou tinha acabado a música ou não sabia a letra direito. Junto com eles, um cão amarelo e mirrado. Parecia ser deles. Não era. Já viram alguma vez na vida uma raça de cães que segue as pessoas com uma cara simpática como quem fala “Olá, amigo. Quer companhia”? Ele tinha esse jeito.

Tentei ignorá-lo. E se fosse dos garotos? Prossegui meu caminhar, mas o cachorro veio atrás de mim, nos meus calcanhares. “Ah, não vai me morder, hein”, observei mentalmente. Por telepatia, ele me respondeu. “De jeito nenhum, mas não finja que não estou aqui”. E acelerou seus passinhos para andar ao meu lado. Ficamos assim um pouco. Eu voltei a me concentrar na música e na paisagem. Então, o danadinho deu uma corrida e ficou na minha frente, meio de lado, meio me sondando.

Foi quando o observei melhor. Vi o corpinho magro e marcado por algumas feridas. Seus olhos doces me encaravam de um modo familiar. Lembrava... lembrava... Sim, Timão e Pumba. Verdade que era um cão e não um suricato. Mas tinha a cara do Timão. Então, eu o apelidei de Timão. 

Timão se apresentando. Solitários se encontrando

Fomos andando juntos desde então. Como o som dos fones preenchesse o vazio da estrada, praticamente não captava o movimento de veículos se aproximando às minhas costas. Tinha desligado o botão do medo de ser atropelada. Nem precisava mais. Timão funcionava como alerta. De repente, ele se encolhia e andava na parte mais encostada ao morro. Carros! E em certos momentos ele dava uma corridinha e parava temeroso, olhos grudados na estrada. Era uma moto. Tinha trauma de motocicletas, pelo visto.

Chegamos numa encruzilhada, que tinha um ponto de ônibus. Timão atravessou a estrada e foi para lá. Ri discretamente. “Vai esperar o ônibus?”. Ou iria pegar o outro caminho. Saquei a máquina e fiz fotos. Pela câmera reparei que ele olhou no meu rosto verde e se decidiu. Voltou para mim. Agradeci pela preferência. Andamos mais um pouco e chegamos à divisa com a cidade. Uma estrada cheia de pó. Foi quando nos separamos. Ele não suportou tanta poeira vermelha e correu pela grama verde, fugindo daquele caos. Eu continuei na poeira.

Enfim, estava na cidade. No tempo em que calculara. Senti o cansaço. Convenhamos: foram bem uns 17 km no dia, sendo 7 km de corrida. Meu tênis estava com algumas pedrinhas por dentro. Mas nem isso me incomodava. Cumprir metas é legal. Deve estimular endorfinas. Na parte de trás da praça central encontrei uma área para atividade física. Como se não tivesse andado tudo isso, fui para alguns aparelhos, para experimentar. Quando dei por mim, eu estava rindo como criança. Tinha subido em um que eles chamavam de “cavalgada” porque dava a impressão de seguir o ritmo da cavalgada. No Parque da Luz chama-se “esqui”. Cada cidade escolhe suas comparações.

Uma mulher com um abrigo de moletom veio me dizer que eu podia pegar informações com ele sobre atividade física. Ainda sorrindo das comparações, agradeci, mas disse que estava ali apenas por diversão. “Mas você já está se exercitando. Isso é bom”. “Acabei de voltar da cachoeira Pedro David. Acho que me exercitei bem”. Ou ela não me entendeu ou achou que fosse ET. Fez uma expressão de estranhamento. E disfarçou em seguida.

Ah, sim. Eu e minha cara verde. Ou talvez estranhasse que todos estavam de blusa e eu ainda estava de camiseta (pudera! Que calor deu a caminhada).

Tive de dar um tempo para poder voltar para minha pousada solitária (ônibus cumprem horários rígidos no alto da serra). Antes, fui tomar um cappuccino na Dona Xica, misto de loja de artesanato, cafeteria, revistaria e cachaçaria. Lugar muito agradável e o único onde pude me conectar em toda a cidade. Bendito wifi. 

Esperando o ônibus na praça central de SFX. Esperando para voltar para minha pousada, 20 km abaixo. E dando um descanso aos pés depois de uma longa jornada

Na estrada, no ônibus, com outro motorista (não o mineiro), fiquei observando a noite. Encarava os últimos 20 km do dia numa escuridão (verdade que ainda tinha os 3 km da pequenina rodoviária até a pousada). O ônibus, não sei por que, corria com as luzes internas apagadas. Em dado momento, num trecho da estrada sinuosa, com o ônibus correndo sem medo, vi um cartaz: “Verifique os freios”. Ah, que lembrete agradável. O que há com essa cidade que faz alertas que despertam fortemente a imaginação?! Que maneira de morrer, pensei, sem temor algum.

Olhei para o céu. Havia tantas estrelas... Elas estão sempre lá, mas as luzes da cidade grande nos impedem de ver esse espetáculo. O céu estava carregado de estrelas como as frutas maduras de um pomar. Gostei da comparação. E assim retornei à minha solidão.


Guardi le stelle

domingo, 20 de maio de 2012

Quebra tudo, Franz Ferdinand


Neste domingo, 20, acompanhei “ao vivo” uma conversa do Alex Kapranos, vocalista do Franz Ferdinand, com os fãs pelo Twitter. Suspeito que esse bate-papo não tenha surgido com esse fim. Acho que o Kapranos estava apenas respondendo alguns tweets e de repente o pessoal mandou ver uma entrevista.

Em certos momentos, dei boas risadas com as respostas do Kapranos, que logo logo estará entre nós, já que tem show em São Paulo pelo Festival da Cultura Inglesa.

Gosto muito do Franz Ferdinand. E dos caras que fazem o FF. Eles são muito simpáticos no palco. Pude comprovar nas vezes que vi o show deles. Numa dessas apresentações, o Alex Kapranos falou em bom português: “Quebra tudo”. Foi muito legal naquela hora.

Esta é a foto do perfil do Alex Kapranos no Twitter.

Não vou me alongar muito aqui. Vou reproduzir trechos da conversa, traduzindo para o português.

- Keira: Alex, você vai carregar a tocha olímpica em Glasgow?
- Kapranos: Eu ia, mas eu machuquei meu pé. Então, Stephen Pastel (músico da banda escocesa indie Pastels) está carregando por mim.

- Plastic Niki: O Franz gosta de jogar Darts of Pleasure na primavera?
- Kapranos: Eu gostaria de jogar dardos agora. Esse é o meu tipo de esporte.
(Referência a "Darts of Pleasure". Daí porque não traduzi

- Altair: Acabei de ver o vídeo Sunday Morning. Adorei.
- Kapranos: Não temos uma música com esse nome. Eu receio.

- Molly Mop: Pode falar algo mais a respeito do próximo álbum?
- Kapranos: Não. Ele se torna hype (no mau sentido) se você fala antes de ele ficar pronto.

- Bone Tellez: Make me woman. (Resolvi não traduzir esta parte)
- Kapranos: Bem, dê-me um laboratório, um corcunda e uma tempestade de raios e eu verei o que posso fazer.
(Ri bastante com essa resposta. Virou Frankestein Ferdinand)

- Vicky Gonza: Por que você não tem uma verified account? (Preciso traduzir?)
- Kapranos: Não preciso provar para mim que sou real. Os outros podem pensar o que quiser.

- Nicole Nick: Show brilhante o de ontem à noite. Eu dancei como uma maluca. Foi um sucesso.
- Kapranos: Valeu, Nicole. Eu adorei. Gostaria de ter dançado mais.

- Wank: Por favor, mostre seus peitos para mim em Winterthur. Beijos.
- Kapranos: Se eu fizesse isso toda vez que me pedem, o mundo estaria doente de ver meus peitos.
(Cada pedido bizarro!)

- Junior Who: Está planejando mostrar algo do novo álbum no Brasil? Eu gosto dessa ideia.
- Kapranos: Eu também.

Um vídeo que fiz. "Outsiders", com o FF

- Junior: Como você se sentiria se o Glee quisesse tocar Franz?
- Kapranos: Quem é Glee? Soa como banda de rock progressivo. Não sou muito fã de rock progressivo.

- Old Yellow Brick: Eu sei que você me ama.
- Kapranos: Ha. Sim, Noel. Eu te amo também, mas pensei que a gente iria fingir uma briga em público para ninguém suspeitar.

- Bianca Baptista: Bem, o Alex Kapranos está tuitando bêbado de novo?
- Kapranos: Nunca fiquei bêbado na minha vida.

- Rekcufami: Blur ou Oasis?
- Kapranos: Pulp.

- Maatyo: Que album você comprou recentemente?
- Kapranos: Eu roubo nas lojas somente os meus álbuns. Fazer download (ilegal, presumo) é uma covardia.

- Magna: O que você mais gostava de fazer quando era criança?
- Kapranos: Botar fogo nas coisas.
(Inevitável pensar em “This Fire”)

Meu vídeo de "This Fire". No começo dá para ouvir o Alex Kapranos dizendo "Quebra tudo"

- Ana Jm: O que você gosta nos seus fãs?
- Kapranos: Eles são geralmente bem espertos, engraçados e não se levam muito a sério.

- Fede: Lady Gaga é um gênio ou é superestimada?
- Kapranos: Um gênio subestimado.

- Emily Hearts: Alguma vez você ficou bêbado tomando álcool gel para mãos?
- Kapranos: Não, mas você me deu uma ideia...

- Amused: Alguma vez você já se vestiu de mulher?
- Kapranos: Quem nunca?
(Outro monte de risadas que dei.)

- Pizcajita: O que você acha de Django Django? Eu acho que o som deles lembra um pouco Franz Ferdinand.
- Kapranos: Eu os adoro. Mas eles são muito diferentes da gente.

- Fatale Jolie: Coca-Cola ou maconha?
- Kapranos: Tizer.
(Essa eu tive de pesquisar. É um refrigerante vermelho vendido no Reino Unido.)

Foto de uma lata de Tizer tirada do Wikipedia.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Virada é legal

Engraçado como frequentemente tento me desculpar antes de apresentar alguns argumentos. É que as pessoas andam muito cheias de certezas. Daí sinto a necessidade de pedir licença para discordar. Isso talvez seja falta de coragem da minha parte. Mas costumo me assumir como medrosa. Apesar desse medinho bobo de não querer melindrar ninguém, mantenho minhas posições - exceto se me convencem do contrário, mostrando por A+B que eu estou redondamente enganada. Isso não é tão simples assim. Nós, os Castellóns, nascemos com o gene da teimosia. Ô, família (precisa ver isso aí)!

Mas, enfim, vamos ao que interessa: a Virada Cultural. Primeiro, não tenho experiência nisso. Chegamos a oito edições e me recordo de ter ido apenas em uma. Esta, portanto, foi apenas minha segunda Virada (lembro de estar fora da cidade em duas ocasiões).

Os jornais cansaram de mostrar os problemas da Virada: desorganização, tumulto, brigas, arrastão, atrasos, falta de segurança e segurança truculenta demais. O investimento divulgado pela prefeitura é de R$ 8 milhões. Parece pouco para um evento dessa envergadura. Não sei se esse dinheiro é o montante desembolsado diretamente. O efetivo policial, por exemplo, entra nessa conta? As horas extras dos funcionários do metrô entram também? O investimento indireto é somado? Creio que não. Acredito que se isso fosse feito o número seria maior.

A Virada Cultural 2012 aconteceu entre os dias 05 e 06, envolvendo mais lugares do que o centro velho de São Paulo. Quem sabia que o Catavento estava de graça, por exemplo?

De todo modo, acho que o dinheiro está mal empregado. Sendo grana pública, entendo que tem um papel da imprensa que é cobrar como a verba é distribuída e como são pagos os prestadores de serviço. Isso porque, no meu entender, há um problema sério de competência na gestão e na organização do evento. 

Tem gente dizendo que não se deveria fazer Virada. Que nosso País não permite essas coisas. Que Virada não serve de nada. Discordo. A ideia da Virada é muito boa. Oferecer tantos atrativos para as pessoas ocuparem o espaço urbano, interagirem com a cidade, isso é legal. Atenção? não estou aqui para elogiar a administração. Longe disso. Não gosto do Kassab, jamais votaria nele e até me ressinto que conhecidos meus tenham votado - mas quanto a isso sou eu que tenho de lidar com a coisa, certo. O que eu gosto é da ideia, do conceito.

Gosto do conceito da Virada. Tornar o espaço urbano mais convidativo para a manifestação popular é bem legal. A rua é de todos, inclusive do pessoal que foi ver o coletivo Sargento Pimenta

Sou absolutamente contrária à maneira como a segurança é colocada na história. Cara dando choque na multidão?! Absurdo. Truculência não combina com nada, muito menos com Virada Cultural. Sim, é preciso dar reforço porque o evento atrai multidões. Mas, enquanto tinha lugar com policial ameaçando com equipamento que dava choque, havia outros em que não oferecia segurança para as atrações. Qual a lógica? A parte dos mágicos, que teria programação 24 horas, teve de ser interrompida porque a rua Direita ficou perigosa. Cá pra nós, a rua Direita sempre me dá a sensação de insegurança. Para uma proposta de ficar direto lá, 24 horas, o cuidado devia ser mais do que dobrado. Talvez triplicado. Um colega disse que uma rua na Cracolândia que deveria ter DJs também teve a programação cancelada. Em parte por esse motivo.

De novo, entendo que há, por trás disso, tem um problema de organização. Se fosse uma agência, ia ter gente mandada embora por causa disso. "Pô, mas cadê a segurança que deveria estar lá das 17h até às 19h?" Responsabilidades devem ser cobradas. Sinto que não se dá o peso devido à produção por trás da organização de um negócio que atrai milhões de pessoas. É necessário que tenha gente muito séria e com expertise para tocar as atrações dentro de prazos e cumprindo requisitos básicos, como ter disponível no horário certo equipamentos e infras apropriadas para o tamanho do projeto. Responsabilidade e competência, please!

Por outro lado, tem uma parte que é responsabilidade do cidadão. Fui curtir a virada às 4h30 do domingo. Queria ter visto uma atração da mágica às 18h. Mas desisti porque não teria a companhia da Laura. Então, optei por preservar o pique para sair às 4h da madruga de casa (queria ver os argentinos do Violentango). 

Um momento do Violentango, que se apresentou na Praça da República. Essa foi a atração que quis ver desde o princípio

No metrô, tinha um monte de gente bêbada. Não estou falando de pilequinho. Estou falando de moçadinha  trançando as pernas, sem conseguir saber onde se encontra direito. Uma menina, com seus 20 e poucos anos, ficou mais ou menos perto de mim mas cheirava tanta bebida que me embrulhou o estômago. Por que ela tinha de se detonar tanto? Ela entrou no trem do metrô e tentava descobrir onde estava. Os amigos dela falavam entre si "alguém vai ter de acompanhar ela". 

Eu já tomei porres (mas isso é mais raro na minha história). Nunca, porém, numa situação dessas. Porre tomei em bar e em festas. Sempre peguei táxi, dei o endereço certinho de casa (mesmo enrolando a língua, bem sei) e até já fiz força para manter um olho aberto para não apagar no táxi. Claro que tive experiências assim, de ter passado da conta no consumo de cerveja ou vinho. Só que eu nunca fui num evento desse tamanho, em que há um risco implícito (sair à noite no centro velho e, ao mesmo tempo, em lugares tumultuados por causa da multidão), e enchi a cara a ponto de perder a noção do que estou fazendo. 

As cenas de meninos e meninas (em geral, é um pessoal novo) tropeçando nos outros de tanto beber me causam certa depressão. É Virada Cultural, não Virada Etílica. Vamos beber as cervejas enquanto curtimos o show, sim. Mas não é preciso se matar de álcool. O mundo vai continuar existindo no dia seguinte. Outros dias - e shows - virão para a gente poder tomar mais cerveja e dar risada com os amigos. Esse desespero para encher a lata não é normal. Ah, sim. Se for menor de idade, então, não tem vez comigo. Sou totalmente contrária a liberar bebida para menor, mesmo que a pessoa em questão seja filho de parente ou de amigo, que "tem toda a consciência, o garoto é esperto... e é só um copo". Cada um sabe o que libera para o filho. Mas depois não brigue com o "moleque" porque está bebendo demais com 20 anos e não diga que está cansada de ter de sacudi-lo até que ele acorde da ressaca todo final de semana.

Outra coisa que me espanto é ver sem-noção estimulando quebradeira. Monumento tem de ser preservado e deveria existir em todo cidadão o respeito por essas obras públicas. Fazer xixi em estátua?! Ah, por favor, o sujeito sabe que está cometendo um atentado? Mas não é só sobre monumento que falo. Vi uma roda de gente aplaudindo uma velha louca que arremessava garrafas no chão e jogava uma pedra em cima de outras garrafas, fazendo um monte de vidro se espalhar. Tinha gente aplaudindo e gritando "aaêê". Daí que a velha louca, tipo a doida dos gatos que aparece nos Simpsons, vira para um grupo de meninas e ameaça jogar a pedra nelas. Teve mulher saindo na corrida dando gritos. O que mais se deveria esperar? Tá aplaudindo a insanidade do ato? Aguente as consequências.

Mas tirando esses aspectos, que até mereceriam uma campanha para "educar" a multidão dias antes da Virada, o grande "x" da questão, na minha visão, continua sendo a falta de uma inteligência maior - ou mais capacitada - para colocar o evento andando nos eixos. 

A atração Chefs na Rua, que causou muita polêmica por causa da galinhada do Alex Atala (eu já sabia que ia dar confusão porque os ingredientes indicavam isso. Comida de graça do chef mais estrelado do Brasil distribuído no horário de pico da Virada ia render mesmo um tumulto dos infernos), poderia ter sido muito melhor se a organização tivesse funcionado direito. A atração foi aberta às 8h da manhã, no Minhocão, mesmo horário em que abriu o Mercado Mundo Mix. Se o negócio começa às 8h, evidentemente toda a infra tem de estar pronta bem antes, certo. Afinal, as equipes precisam montar pratos, esquentar comida, fritar alimentos, etc. Tinha barraca que não tinha recebido as panelas até 9h20. 

Eu e minha amiga de infância Stella fomos comer o sanduba de pernil da Paula Labaki - a casa foi aberta pela mãe da Paula, cujo nome é Lena. Soubemos disso lá, na barraca

Sobre o episódio da galinhada, melhor ler o Xico Sá, que é matador em seu artigo que aponta que é um contra-senso a administração pública se armar contra a comida de rua, mas promover um evento chique para tratar de requintes culinários. Ou seja, a prefeitura é contra a barraca de pernil na rua, só que pernil de restaurante bacana pode ir para a rua. Ah, nem falo mais. Melhor ler mesmo o Xico: A galinhada do Kassab e a comida de grife

No Mercado Mundo Mix, vi uma das últimas barracas com um cara e sua máquina de costura. Ficou simpático aquilo. O sujeito fazendo ali, na hora, chapéus e outras peças para o público conferir in loco o seu talento. Mas naquele horário, por volta das 9h, a energia elétrica ainda não estava disponível. Daí que ele ficou bem na foto, só que não podia trabalhar. Nem botar para funcionar seu toca-disco e entreter o pessoal com sua coleção de vinis. O cara veio preparado. E a organização o deixou na mão no momento da abertura da feira.

O cara estava no maior pique. Mas não tinha energia. Elétrica

Essas coisas não me apagaram a boa impressão que tenho do evento. Ou do conceito do evento. Vi o Violentango em condições bem interessantes. Não tinha muita gente (como eu tinha calculado) e os loucos da praça não me incomodaram. Foi um excelente show. Pena que faltou público para apreciar aquelas magníficas execuções. Os músicos mereciam mais aplausos. Mas, tudo bem. Entendo. Não dá para colocar todas as atrações no prime time.

Uma das músicas executadas pelo Violentango. O vídeo foi feito por mim

Depois vi o Sasquat, um pernambucano do Recife que veio com sua banda Alfazema apresentar seu som, seu primeiro CD. O guitarrista do grupo dizia "é muito bom tocar em São Paulo", mostrando que chegar à capital paulista representa um marco na vida dos músicos fora do eixo Rio-SP. Deve ser mesmo uma longa jornada.

Ali, eu e a Stella, minha companheira de Virada, pudemos conferir a qualidade do som que fizeram. Bons músicos. O Sasquat parece ser um cara legal. E tem isso que o Recife revela talentos distintos. Lembrei de Chico Science. Lenine. Tem gente muito boa vindo de Pernambuco. 

Esse é o Sasquat, que tocou no Coreto da Praça da República às 6h30

Em seguida, fomos ao Chefs da Rua. E comemos bem. Verdade que escolhemos um sanduíche frio que nos abasteceu às 8h da manhã. Detalhe: num momento em que o frio parecia ter aumentado. Mas eu curti de todo modo. Não tinha muvuca (pelo horário, suponho) e a gente podia escolher outros pratos para provar, se nos desse na telha.

O Minhocão não estava tumultuado às 8h da matina, quando abriram a feira do Mercado Mundo Mix e o Chefs na Rua...

Para nós, a experiência foi tranquila. Vendo o Sasquat, a gente riu porque todos os loucos da praça se juntaram para dançar na frente da banda. Medo? Não. Diversão. Não foi legal o cheiro de xixi que atingiu nossas narinas num certo momento. Só que me veio na cabeça que a praça da República tem sido habitada pelas pessoas da rua. Indivíduos sem nome, sem casa, sem perspectivas. O espaço era deles antes de chegar a multidão. O que acontece com essas pessoas? Uma delas eu vi na praça, enrodilhada num cobertor velho, dormindo com a cabeça coberta. Na mesma área, vi outras pessoas - estas com casas, provavelmente com endereços de trabalho - apagadas na grama. E me perguntei de novo por que essa mania de se detonar tanto? A ponto de não conseguir ir para casa. Deve ter gente que ainda queria prosseguir na diversão e, talvez por isso, tenha decidido descansar naquele lugar até a próxima atração começar. Mas, sei lá, para mim é estranho.

Pessoal vendo o Sasquat no maior sossego. Devia ser o horário

Enfim, espero que a próxima Virada seja mais organizada e que haja uma verdadeira inteligência a organizar tudo. E que essa organização seja mostrada de forma transparente. Eu queria saber, por exemplo, quem responde pelo fato de as panelas dos chefs não terem sido entregues bem antes das 8h. Ou de a energia elétrica não estar disponível também bem antes do horário de abertura da feira do Mercado Mundo Mix. Certamente alguém deve ter comentado na hora do planejamento: "ah, vamos precisar de energia elétrica lá. Precisamos pedir para o seu Zé para ele ver esses cabos, essas extensões para que estejam funcionado, às... pode ser às 7h30?!". E acho que alguém deve ter respondido à questão. Quem?

terça-feira, 1 de maio de 2012

A culpa é minha

Torcedor de verdade, daquele que fica se roendo diante da TV ou que pula e canta no estádio, já deve ter passado por isso: sentir que é você o culpado. O universo, de repente, decidiu olhar pra você e te castigar pelas maldades feitas, pelas palavras tortas, pelos pensamentos torpes (no critério dele, o universo). E assim, do nada, para tudo que você torce no esporte vem a sina maldita: a derrota ou até a humilhação.

Por que o esporte? Não sei. Vai ver que é porque ele te dá uma alegria coletiva de alta intensidade, uma sensação de que você está entre os campeões. Um show te dá uma dose de forte energia que você compartilha com os fãs que cantaram junto com você a mesma música que te emociona. No esporte isso também acontece. Mas a ideia de que você está no topo do mundo, que você é o número 1, o grande vencedor... acho que não rola desse jeito num show. É... é outra coisa.

Mas um dia você cai em desgraça. Na linha "não sei porque estou apanhando, mas devo estar merecendo". Aí, toca a relembrar os fatos passados, os comentários sarcásticos, as respostas atravessadas, o olhar bruto sobre o cotidiano, a insensibilidade diante de um episódio que parecia nada ter de especial na sua vida. "Terei sido grossa com algum corretor de imóveis? Mas foi só porque já pedi mil vezes para me tirarem do mailing. Ou fui má com um pedinte? Só que, puxa, eu realmente acho que não devo dar dinheiro nas ruas. Será que foi porque xinguei o motorista que deu aquela fechada criminosa? E se o cara estivesse correndo pra salvar a vida de alguém?! Ou foi por eu não ter adicionado aquele mala no Facebook? Ops, mala, não. Desculpe".

O primeiro sinal de que estava sob a nuvem negra desportiva, impingida pelo universo, foi a queda de rendimento do meu Palmeiras. Ele estava indo bem, dando gosto e tudo. Aí, começou a desandar. Ok, dei desconto. Meu time anda em crise psicológica tem um tempo. Parecia ter se recuperado. Mas não. Ah, essas crises. Bem conheço. Uma hora você está bem. Noutra, cai no fundo do poço mesmo. Não adianta mais psicologia. Tem de chamar logo um psiquiatra.

Olha a nuvem chegando...

Outro sinal foi ter perdido gols e não ter estufado nenhuma vez a rede na última partida de futebol feminino de que participei. Até então, era artilheira. Naquela noite, passei em brancas nuvens. Saí encafifada.

A ordem dos acontecimentos, agora, não sou capaz de reproduzir. Mas vamos a eles: o Barcelona perdeu. Como assim? Perdeu. Tudo bem. Era só um gol do Chelsea. Recuperação na certa no Camp Nou, dizia meu cérebro. O coração deu pequena vacilada. "Vamos que vamos", rebati o feeling internamente. O tempo me revelou que o feeling estava certo. "O quê? Derrota para o Real Madrid? Justo contra eles! Detesto o Real Madrid. Time da realeza não tem vez comigo". Era o choque. Duas derrotas seguidas.

Estava vindo aquele sentimento. Seria eu a culpada? Bastava torcer para alguém e... de repente a cabeça dos atletas ficava bagunçada. Precisavam todos de psicólogos? Ou psiquiatras? Não. Bobagem.

E o universo continuou a me castigar. Na Fórmula 1, nem Hamilton, nem Button. Calma! F-1, não. Não podia ser. A corrida do Bahrein, no entanto, me dizia "Quem mandou torcer?".

Já se imaginaram num desenho em que todos têm a mesma cor, exceto você? Já acharam que aquela música do Travis, "Why does it always rain on me", está tocando pra você? Com tantas coisas acontecendo na minha torcida, o pensamento começou a se desenhar. Era eu.

Vídeo do Travis: Why does it always rain on me. Não conhece? É a sua chance

A pá de cal veio com o segundo jogo entre o Barcelona e o Chelsea, time que detesto ("direitosos!", resmungo). Eu não podia assistir. Estava trabalhando. Um evento inteiro acontecendo, eu marcando entrevista e o jogo rolando. Estava esperando um cara para uma entrevista quando vejo um grupo de homens se juntar diante de uma telinha pra ver o embate. A coisa estava quente. Corri para conferir enquanto meu entrevistado não chegava porque um urro tinha percorrido o local. E então? Messi tinha perdido um pênalti. Seria o gol da classificação.

Messi? MESSI?! Depois do silêncio dentro de mim, veio a conclusão. Fui eu. Não foi ele quem errou. O problema estava do outro lado do mundo. Em uma pessoa que nem estava vendo o jogo. Em uma fã do Messi. Uma torcedora do Messi. Eu.

O entrevistado chegou e comentou a cena de todos estarem juntos vendo o jogo, o acontecimento mais importante daquele dia. Falei do placar. Falei do pênalti perdido e desabafei. "A culpa é minha. Estava torcendo pelo Barcelona e pelo Messi".

Sorry, Messi. Really (foto tirada do perfil oficial dele no FB)

Aí, conformei-me. Por algum motivo, o universo não quer me dar essas alegrias no esporte. Acho que é para eu me voltar para outra área. Talvez dedicar-me à botânica. Quem sabe as artes. Pode ser algo inocente e que não atormente tanta gente comigo por causa dessa minha maré, dessa nuvenzinha sobre mim.

No final de semana, fiquei vendo o jogo São Paulo x Santos. Na minha família (no "núcleo duro", quero dizer), não tem nenhum santista. Tem um são-paulino: meu pai. Para espanto do meu filho, anunciei que estava torcendo pelo São Paulo. "Nunca vou torcer pelo São Paulo", rebateu o filhote, criticando a empáfia de certos torcedores, seu corintianismo fazendo aumentar o tom da voz. Respondi calmamente. "Vou torcer pela alegria do seu avô". O pai dele, que estava em casa e que também é corintiano, reforçou: "Absurdo". Não me alterei. De verdade, não sentia emoção em estar do lado, provisoriamente, desse time. Pensei tão somente que, se desse vitória do São Paulo, o velho Ricardo ficaria feliz. Por que negar-lhe essa alegria? É meu pai, ora.

Não é que eu tenha esquecido da conspiração do universo. Mas não era uma torcida para fazer minha felicidade, certo?! Podia ser que... Não. Não adiantou. O São Paulo perdeu. Reafirmei que era minha culpa e narrei os últimos acontecimentos. Para meu consolo, disseram-me que também já tinham sentido a mesma coisa. Que bom. Não sou exatamente uma pessoa má. É que o universo, vez por outra, resolve escolher alguma vítima para causar esses tormentos esportivos. Não tem uma fase na vida que você se julga "o pé-frio" e deixa de ir ao estádio ou ver jogos do seu time na TV porque sabe que ele vai perder se o fizer?

Então, a bola está comigo. Espero que isso passe logo.

Sou a escolhida. Torcer? Não, obrigada. Ficarei de jejum, se é que dá...