sábado, 18 de fevereiro de 2012

It was hard, but I was harder

No título deste post, repito a frase que li num blog de corrida. Completei dois meses do estabelecimento da minha meta “disputar a São Silvestre”. Bem, não lembro exatamente quando coloquei isso na cabeça, nem quando efetivamente comecei a colocar o plano em prática. Mas escolhi o dia 17 de dezembro para ser a data. Gosto do número 17.

Meus progressos são bons, julgo. Podia estar melhor? Sim. Mas venho fazendo tudo por minha conta, seguindo orientações aqui e ali. Pegando dicas com amigos e, sobretudo, correndo com cautela. Não quero forçar barra nenhuma. O objetivo é chegar em dezembro em plenas condições de correr 15 km sem sofrer com uma dorzinha misteriosa ou sem ter de torcer para não sentir reflexos de um problema que tive lá atrás.

Gosto de correr no Parque da Luz. 


Minha prática cotidiana no Parque da Luz me satisfaz bastante. Primeiro porque peguei o gosto de correr. Sim, faz bem. Depois porque curto valorizar meu bairro. O parque pode se chamar “da Luz”, mas é tão do Bom Retiro quanto do bairro vizinho. Está no limite. Ou na intersecção, como queiram (ainda se usa escrever “intersecção”? Dúvida).

Claro, sinto os sacrifícios. Esse negócio de acordar às 5h20 durante a semana não é legal. Explico. A maioria dos amigos sabe que eu acordo cedo mesmo. Muitas vezes em torno das 5h. Mas acordar é uma coisa. Sair para fazer algo é outra coisa. Há momentos em que não tenho vontade de me arrumar para correr no parque naquele horário. Só que eu me obrigo a sair até 5h45 para poder aproveitar melhor o tempo que tenho. Vou falar que sair às 5h45 já significa sair em cima. Mais um pouco e atraso meu dia.

Acho que passei agora pelo maior sacrifício em relação à corrida. Já falei aqui que estou me tratando de depressão. Creio que falei rapidinho, sem entrar em maiores detalhes. Não pretendo abrir tanto minha intimidade. O fato, porém, é que nestes dias tive uma recaída inesperada. Quer dizer, eu não esperava ter tamanha recaída. Foi pouco depois de ter voltado de Buenos Aires (mais abaixo contarei da minha corrida na capital portenha). Poderia pensar que, após um final de semana bonito e agradável, teria uma ótima semana. Mas não há jeito de entender o que se passa com a gente.

Um dia senti que não podia fazer mais nada. Era uma quarta-feira. Meu abatimento foi tão forte que desejei não sair de casa. O celular soou às 5h20, avisando-me que era hora de me preparar. Não quis fazer nada. A razão dizia: “levante-se antes que você se atrase para a corrida”. Mas o coração pesado e triste me jogava para baixo. O relógio mostrava o tempo escoando. Não tinha forças para reagir. E eu tinha reunião e trabalho pela frente.

Como sou muito responsável, arranjei uma maneira de arrastar meu corpo para fora da cama. Entendam: isso não tem nada a ver com preguiça. Era como se eu estivesse mergulhada numa escuridão petrificante, que me segurava, imobilizando pernas, braços, que sugava quase toda minha energia. Consegui vencer a prostração e fui à terapia (tinha horário marcado já). Conversei sobre isso lá. Confessei que por pouco faltei à consulta. Eu tinha duas naquele dia e disse que iria desmarcar a segunda por me sentir doente. “Não estou bem”.

Saí da terapia um pouco melhor. Tinha o desejo de mudar o quadro e acreditei que no dia seguinte seria tudo diferente. Antes de pegar o táxi rumo a minha reunião, percebi que tremia de frio. Minhas mãos estavam muito geladas. No entanto, era um dia de sol e calor. Devia ser efeito da depressão. Lembrei de Harry Potter, quando a autora fala dos dementadores. Era aquilo mesmo. Havia um dementador sobre mim.

Cena de Harry Potter em que um dementador suga o ânimo de Duda Dursley (primo de Harry)


Veio a quinta-feira e de novo sofri com as consequências da depressão. O desânimo absoluto se instaurou de novo. Não é fácil enfrentar esse mal. Mesmo medicada, seguindo a terapia, comparecendo às consultas... não é fácil vencer o problema. Espantoso como a química cerebral interfere tanto em nossa vida. Resultado: não fui correr. Eu me maldizia. Era uma grande frustração. Mas não adiantou ficar me recriminando tanto. Não consegui superar a depressão. Levantei-me apenas para trabalhar.

Por que eu conseguia reagir para trabalhar e não para correr? Devia ser por causa da consciência de que o trabalho é obrigação e que dele depende o sustento de três pessoas (eu e os filhotes).

Na noite de quinta-feira, fiquei mentalizando que correria na manhã seguinte. Fui para cama cedo e tentei ver programas leves. Antes, forcei-me a comer um pouco (com a depressão a vontade vai embora; pelo menos no meu caso). Amanheceu... e fui derrotada mais uma vez. O dementador estava lá. Deu um certo desespero quando saí para trabalhar. Lembrei-me da psicoterapeuta tentando me incentivar a superar aquele quadro. E tive o receio de ter comprometido minha meta.

It was hard, but I was harder. Sábado! Consegui. Acordei cedo. Vi um pouco de TV (o desfile da Mancha Verde no carnaval). Tomei café. E consegui. Coloquei a pulseira do Nike+, levei o celular e acionei o aplicativo RunKeeper (sou meio exagerada nesses controles). Arrumei os fones e parti. No começo, tive dúvidas se daria para fazer meu circuito normalmente. Não nego. Foi mais custoso. Na semana eu tinha corrido apenas na terça-feira (6 km).


Minha retomada não chegou a 6 km, como mostra o Nike+. Mas tudo bem

Mas o que importa é que consegui cumprir o roteiro “tradicional” da semana. Dei três voltas no parque. Não fiz os 6 km. Foram 5,7 km em 35 minutos. Senti o esforço. Lamentei ter perdido tantos dias, ter ficado para trás. Diante do que tinha passado, porém, foi sim uma vitória.

Espero não ter outra recaída. Gostaria de dispensar logo o tratamento. Nem posso tomar as tantas cervejas ofertadas por amigos e outras pessoas (de repente venho sendo chamada para sair de um jeito que nem imaginava). Mas, obediente que sou, dispenso esse tipo de encontro. Não posso beber mesmo. Quando for liberada, ah, vou querer logo partir para um pub. Será um brinde especial a tudo que superei.


Mi Buenos Aires querido

Antes de falar da capital argentina, vale o reforço: a corrida tem me feito bem. Pude, por exemplo, dormir melhor. E o fato de dormir pouco era algo que preocupava meu médico. Então, encaro o exercício não só como uma rotina que me dá prazer e boas condições físicas. É mesmo um remédio para me tirar do quadro depressivo. Um reforço. Ainda mais porque faço em lugares abertos. Outdoor total.

Recentemente fui para Buenos Aires a trabalho. Não tive muito tempo para passeios. Mas não me queixo. Passar o final de semana em Buenos Aires é sempre bom. O sábado foi um dia cheio. Tive a pretensão de correr 6 km. No sábado anterior eu tinha superado os 10 km. Puxa, em Buenos Aires não iria fazer seis? Claro que sim. Ah, quanta pretensão.

Minha corrida portenha foi no circuito que a cidade inclui num programa de esportes, o BAHD (Buenos Aires Haciendo Deportes)

No tempo que me restou no sábado, calculei que poderia fazer uma boa corrida nos parques de Palermo. Calculei errado. Entre a saída do restaurante e a chegada no local, já paramentada, transcorreu apenas uma hora. E sabe onde almoçamos? No Las Lillas. Ou seja, carne (muito boa). Obviamente, não foi tempo suficiente para a digestão.

Em Palermo há vários espaços legais para a prática desportiva

Eu tentei mesmo assim. Corridos menos de 3 km percebi que não dava. O almoço queria voltar (desculpe pelo detalhe). Tive de parar de correr na hora. Tomei goles e goles de água para tentar me reestabelecer. Foi um mal estar pesssssado. Abandonei a corrida com 3,39 km, diz o RunKeeper. Depois fiquei caminhando pela região. Tinha passado correndo pelo Roseiral. Então, aproveitei aqueles minutos – ainda debaixo de sol forte – para apreciar as flores.

Voltei para ver as flores do Roseiral


Apesar de o resultado não ter sido o esperado, posso dizer que curti. Ouvi um cara me explicando a sensação boa que é correr em terras estrangeiras. É uma maneira diferente de conhecer a cidade. Certamente. Conheci Buenos Aires de um modo diversos do que já tinha vivido. Na próxima vez que voltar à capital argentina pretendo reservar um tempo especial para correr de novo. Por enquanto, vai aqui um “gracias, mi Buenos Aires querido”.

Deixo aqui um som que me acompanhou na corrida deste sábado de carnaval no Parque da Luz

domingo, 5 de fevereiro de 2012

“I see dead people”

Fragmentos de uma mente caótica, a minha. Sério, dá para deixar a mente trabalhando em ordem? A minha viaja, assume várias direções e vai montando um acolchoado de histórias. Só eu me entendo nessa bagunça.

Ahn, este post está dedicado ao fantástico. Não, não se refere ao programa. É melhor ler para saber.

- O homem escondido na árvore
Não sei se vocês sabem, mas há fantasmas no Bom Retiro. Dou exemplos – e dou fé. Quando eu era criança, brincava de escolher alguém na rua e acelerar meus passos para ultrapassar essa pessoa. Podia ser moleque ou adulto. Eu marcava quem seria a “vítima” do meu rápido caminhar. Daí, acelerava até superar a pessoa escolhida. Era uma pequenina vitória. Era uma brincadeira que apreciava. Devia ter oito, dez anos.

Numa manhã escolhi um velho. Ele estava uns metros a minha frente. Não seria difícil ultrapassá-lo ainda que eu carregasse a mochila pesada da escola e o velho nada trouxesse. Estávamos perto da igreja Nossa Senhora Auxiliadora. Acelerei os passos. Não seria difícil. Apressei mais. Estava perto. Mantive o ritmo veloz. Minha vitória logo viria. Mas o velho virou à esquerda na esquina da igreja e sumiu da minha vista, protegido da minha visão pela imensa estrutura da construção. Dei minhas passadas e estava crente que seria dobrar a esquina da igreja e alcançar o velho. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o homem tinha desaparecido. Como assim? Ele virou a esquina e eu virei dois segundos depois. Não havia nenhuma porta nas imediações. Não tinha como ele entrar em qualquer lugar. E nem atravessar a rua sem que eu o notasse. Nem mesmo se corresse. Não daria tempo de ele sumir da minha vista. Mas ele parecia ter sido tragado pela terra.

Eu parei por instantes procurando por ele. Nunca entendi o que se passou. Por vezes achava que ele poderia ter sido um fantasma. O velho não devia ser gente de carne e osso. Não havia resposta racional para o sumiço.


Esta é a igreja Nossa Senhora Auxiliadora, que fica em frente à pça. Cel. Fernando Prestes, onde fica o metrô Tiradentes

Esse foi o primeiro grande caso de gente-que-não-existe ter ocorrido no Bom Retiro. Quer dizer, das histórias que sei. O bairro é bastante velho. O Parque da Luz, onde corro, foi instituído, por exemplo, em 19 de novembro de 1798.

Outro dia minha filha estava andando de carro com minha irmã. E de repente ela se espantou. Disse para minha irmã: “juro que vi um homem na esquina e que ele sumiu de repente”. Quando soube da história, brinquei: “vai ver é o velho que eu tentei ultrapassar na minha infância”.

Isso me lembra outra ocasião da infância. Na verdade da adolescência. Acho que estava com 14 anos. Eu tinha de pegar um ônibus e estava no ponto perto da igreja Nossa Sra. Auxiliadora. Do outro lado da rua, no meio de arbustos e folhagens altas, divisei um vulto. Não conseguia ver seu rosto, mas tive a certeza de que ele me olhava. Tentei enxergá-lo melhor, apertando os olhos (desde os 13 anos uso óculos). Mas vinha um ônibus e tive de parar. O ônibus corria e não havia ninguém para fazer sinal de parada. Quer dizer, eu e mais uma pessoa estávamos no ponto e essa pessoa não se aproximara, percebendo que não se tratava do coletivo que esperava.

Distraí-me olhando o ônibus que vinha rápido. Então, senti que me empurraram. Tomei um susto e fui projetada para frente. Felizmente, consegui me equilibrar e puxar meu corpo para trás bem a tempo de evitar que o ônibus me pegasse. Virei para ver quem tinha me empurrado. Ninguém. Aquela pessoa que estava no ponto não tinha saído de seu lugar e aparentemente nem tinha notado o que tinha acabado de acontecer. Voltei a olhar para os arbustos do outro lado da rua. O tal vulto tinha ido embora. De novo, não tinha resposta racional para o que acontecera. No entanto, achei que o vulto tinha sido o autor do empurrão.

Agora retomo o presente. Numa de minhas corridas de “madrugada” (às 5h45), passei por um homem escondido numa árvore, perto do portão principal, o único que fica aberto no horário da caminhada (5h30 às 9h). Era minha primeira volta no parque. Imaginei que o homem, que usava calça escura e uma camiseta azul, tivesse ido para lá para se aliviar. Desviei o olhar desse trecho da trilha. Estava escuro, mas eu não iria encará-lo num momento tão inapropriado. Pensei que ele devia ser novato no parque. Tem um banheiro que fica aberto no final do trecho que circunda a Pinacoteca.




Boo! O homem que vi estava à esquerda da árvore, e não à direita como nesta foto

O homem estava escondido mesmo. Ao passar por ele, pouco antes de desviar o olhar, notei que se apoiava na árvore e me observava. Seu rosto estava protegido pela escuridão. Continuei correndo. Na minha segunda volta, logo depois de deixar para trás o portão principal, entrei na trilha de terra, rumo à “Floresta Úmida”. No mesmo trecho da árvore, eu percebi o homem. Bem, então, ele não estava ali para fazer xixi. De novo, notei que ele se esgueirava na árvore e sua cabeça se movimentava para acompanhar meus passos. Tive um pequeno calafrio. Corri mais um pouco e no momento em que fazia a curva para entrar de vez na “Floresta Úmida”, virei o rosto para encarar o homem. Ele tinha sumido.

- Minha mãe, contadora de histórias
Nem de longe tenho a habilidade de minha mãe, dona Ema, de contar histórias arrepiantes. Ela traz a tradição latino-americana da narrativa fantástica. Uma das histórias que mais me impressionaram é a do sumiço da minha tia Beth. Diz minha mãe que todos os filhos da minha avó – e mais minha avó Maria – dormiam num quarto que tinha duas portas de madeira maciça. Uma dava para a rua Aroma ou Aurora (não lembro qual delas era a rua dos fundos). A outra dava para o quintal.

Antes tenho de explicar. Essa casa da minha avó parecia um sítio com várias construções. Ficava em Punata, interior de Cochabamba, na Bolívia. A primeira construção abrigava o bar da família (eles produziam uma bebida típica boliviana e os moradores iam comprar lá seu suprimento de chicha – esse é o nome da tal) e os dormitórios onde viviam meus primos. Aí, vinha um pátio que tinha outra construção, mas de dois andares. Nele vivia meu tio Enrique. Ao lado, havia a cozinha “moderna”, ambiente que tinha fogão, geladeira e objetos da modernidade. Do outro lado do pátio havia um espaço aberto e coberto com mesas largas, que era uma espécie de sala de refeições. Cabia muita gente ali. Em frente, a casa onde viviam minhas tias-avós.

Depois, tinha um espaço aberto, onde estavam as construções que abrigavam banheiros e lavanderia. Do outro lado nessa área, um pomar cheio de árvores. Lá, eles criavam pombos e outras aves. Em outro pedaço havia um chiqueiro de porcos – sim, isso mesmo. Eu tinha um medo danado desse lado do grande quintal. Tinha medo dos porcos porque eles eram muito grandes. Em seguida havia a construção em que se faziam as bebidas, com enormes panelas de barro que fumegavam com o líquido que fazia a base da chicha. Logo depois tinha uma região com videiras, das quais nunca colhi uma uva doce (eu devia visitar a Bolívia na época em que as uvas deviam estar verdes). Nessa área, ficava a casinha da minha bisavó, a quem chamava de abuelita Tomasa.

Do outro lado do quintal, nessa região, estava a velha cozinha. Era uma construção escura pela fumaça de muitos anos. As panelas lá eram também grandes e o fogo era alimentado por lenha. Minhas tias gostavam de preparar lá os pratos – a cozinha moderna ficava para os mais novos. Elas se sentavam em banquinhos baixos e ficavam conversando em quéchua, a língua dos incas, enquanto descascavam batatas, debulhavam milho, picavam legumes. Finalmente, no fundo desse largo terreno, que se estendia de uma rua para a outra, ficavam o quintal e área dos cachorros e o depósito de lenha e, à esquerda, no canto desse imenso espaço, ficava a construção onde vivia minha avó e onde se montava um largo presépio no tempo de Natal.

Todas as construções tinham chaves largas e cadeados pesados. As portas que davam para a rua também tinham um grosso pedaço de madeira que era colocado atravessado para impedir invasões. Não havia como sair por essas portas sem pedir que alguém fechasse depois com a tranca pesada de madeira.

Minha mãe conta que uma noite foi acordada pela abuelita Maria, aflita. Ela tinha se levantado para observar os filhos, como fazia sempre. Tinha o hábito de conferir se estavam cobertos, se precisavam de algo. Minha mãe era a filha mais velha.

Naturalmente, era ela a quem minha avó recorria toda vez que precisava de ajuda. Minha mãe não tinha entendido exatamente o motivo da aflição. Então, entendeu. A abuelita Maria perguntava onde estava Beth. A cama da filha do meio estava vazia. A cama do tio Enrique, o caçula, estava apenas com o tio Enrique. Beth não tinha ido tampouco para a cama da irmã Ema. Minha mãe perguntou se ela não tinha saído para ir ao banheiro. Foi aí que se deu conta do mistério. As portas estavam todas trancadas por dentro. A grossa barra de madeira estava lá. O cadeado estava intacto. E a chave ficava com minha avó.

Procuraram por todos os lados. Debaixo da cama, olharam armário, bateram à porta da abuelita Tomasa, cujo quarto ficava próximo ao dormitório da minha avó. Nada.

Começaram a percorrer a casa, o quintal, todas as dependências. Luzes se acenderam. As tias se juntaram. Os filhos, os agregados. Onde estava Beth? O mistério permanecia porque as portas estavam trancadas quando do sumiço da menina.

Minha mãe não conseguia compreender o que teria se passado. Beth e Enrique eram medrosos. Não eram do tipo que se mete em aventuras. Era sempre ela quem tinha de ajuda-los. Daí porque não conseguia imaginar Beth pregando alguma peça. E até porque, para isso, teria de ter surrupiado a chave da própria mãe, mulher vigilante e severa.

Aparentemente, não havia solução. Foi quando abuelita Tomasa decidiu o que deveria ser feito. Minha bisavó tinha como filhas Maria (minha avó, a quem também eu chamava de abuelita, que vivia só com seus filhos), Assunta (casada e mãe de quatro filhos), Raquel (solteira), Rosa (casada e que morava em Cochabamba) e Fausta (que também se casou e teve quatro filhos). Abuelita Tomasa pediu que todas as mulheres cobrissem suas cabeças com véus e que todos os homens se arrumassem. Não sei a que horas da noite tudo aconteceu, mas a família foi em peso à igreja. Falaram com o padre e pediram na mesma hora para que se fizesse uma oração. Tudo comandado por minha bisavó, uma mulher pequena e magra, mas dona de forte personalidade, durona e respeitada. Era uma verdadeira autoridade e na casa era ela quem mandava e desmandava.

Rezaram e depois voltaram para casa. Abriram as portas do dormitório de minha avó, que vinha lamuriosa. Minha mãe cuidava de seu irmão caçula, o medroso Enrique. “Por tudo ele chorava”, reclamava minha mãe. Então, destrancado o cadeado e acesas as luzes viram minha tia Beth, em sua cama, dormindo profundamente. Foi um espanto. Mas minha bisavó não deu muito tempo para que as pessoas comentassem. Resumiu o episódio com uma frase curta: “É preciso rezar mais”.

Interior de igreja, em Punata, Cochabamba, Bolívia

Escrevendo esta história, lembro de minha mãe contando tudo isso quando eu era menina. É muito melhor acompanhar sua narrativa, seus olhos verdes nos encarando para sondar o que se passava conosco durante a descrição dos momentos. Eu a ouvia com meu coração aos pulos. Perguntava, insistia. “Mas o que tinha acontecido? Como tinha Beth tinha sumido? Foi coisa do diabo?”, disparava, com medo de que a resposta para a última pergunta fosse sim. Minha mãe simplesmente dava de ombros. “Não sei como isso aconteceu, mas mostra que é preciso ter fé. A abuelita Tomasa sabia disso”.

Vocês podem pensar que ela inventou isso. Mas nunca se enganou com a história, nem com seus detalhes. Minha mãe continuou contando o episódio mesmo quando eu já era adulta. E contou outras histórias. Não tem como se levantar da cadeira enquanto ela narra.

- O corredor mais bonito do mundo

Li um conto de Gabriel Garcia Marquez que rememoro aqui: “O afogado mais bonito do mundo”. Acho que está no livro de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Se não souberem o que é, procurem. Vale muito a pena. Resumindo, um dia, em uma aldeia à beira-mar, no Caribe, resgatam um cadáver. Era o corpo de um homem muito bonito. Mas tão bonito que todos decidiram dar-lhe um enterro muito honrado. As mulheres choravam diante daquele homem morto e imaginavam como ele teria sido vivo e como deveria ter feito muito feliz sua esposa. Os homens, passados os ciúmes iniciais, se sentiam tristes. Deram-lhe um nome, Esteban.

Eu não vi nenhum cadáver, benza Deus. Mas estava na minha corrida no sábado quando passou por mim um homem alto, magro e de panturrilhas bem torneadas e bronzeadas. A primeira coisa que vi foram as pernas. Correndo ainda, observei o tronco e a cabeleira. Logo deduzi que devia ser coreano. Os cabelos estavam pintados em um tom que não sei definir. Era castanho puxando levemente para laranja, mas bem leve, quase uma sugestão de cor. Coreanos gostam de usar cabelos diferentes. No caso, os fios lisos estavam bem cortados e nem eram tão curtos. Enquanto corria, os cabelos balançavam suavemente.

Foi uma bonita visão. O homem corria com uma bermuda azul e camiseta azul escura. O suor cobria seu pescoço e um pouco das costas. Mas não tinha nada de desleixo. Era suor da corrida. Não consegui ver seu rosto direito, mas percebi os olhos puxados.

Era, de fato, belo. Não tinha visto, até então, um coreano que eu pudesse falar: que homem bonito. E não tinha visto um coreano realmente alto. Os contornos do corpo davam mostras que ele costuma se exercitar. Seu ritmo parecia bastante regular. No entanto, tinha sido aquela a primeira vez que o encontrara no meio do caminho.



Não deu para ver direito o rosto do corredor, mas dele ficou uma bela imagem, que não é esta, diga-se (a foto é só para ilustrar)


Eu o vi mais duas vezes durante minha rotina. Ele devia ter começado bem mais cedo do que eu. Afinal, fiquei um bom tempo no parque movida pelo desejo de correr 10 km, o que cumpri. Não sei se voltarei a ver esse corredor. Nem tenho intenção de falar com ele. Acho mais interessante assim. Vê-lo correr, com seus passos ritmados e suas pernas compriadas bem delineadas e bronzeadas, já está muito bom. Como nunca antes tinha reparado em corredores, ele fica sendo, por ora, o mais bonito do mundo.
Não tinha atinado com nenhum apelido para dar para ele. Até que busquei as referências de “O afogado mais bonito do mundo”. Então, eu o batizo de Esteban.

Como este post tem algo de fantástico, vocês podem pensar que ele, Esteban, não existe. Tudo bem. Pode ser que ele esteja apenas na minha imaginação. Se voltar a encontra-lo durante minhas corridas, eu aviso.