sábado, 24 de março de 2012

Eu e o morador de rua

Correr tem me tornado mais humana. Eu acho. Talvez porque tenha buscado a atividade como um resgaste desta pessoa que vos escreve. Sem maiores dramas, digo que eu precisava cuidar de mim. E nisso de olhar  para mim acabei olhando também para os outros.
Pela manhãzinha, quando o sol nem saiu ainda, eu vejo os demais corredores como gente muito dedicada. Fico imaginando diálogos com eles. Envio-lhes mensagens mudas, que nunca receberão de verdade. Não cometeria o exagero de dizer que são minha nova família. Não são. Mas temos coisas em comum. Outro dia reencontrei a loirinha do rabo de cavalo e fiquei feliz que ela tenha saído do aparelho em que se exercitava para dar a vez para uma senhora coreana. Ora, então ela se preocupa com os mais velhos. Legal.
Aliás, está cheio de coreanos no Parque da Luz, meu lugar favorito para correr (não porque seja o mais bonito ou o maior, simplesmente porque eu o conheço desde criança). Isso merece elogios. Que gente mais ativa. Neste sábado, por exemplo, vi um casal de cabelos brancos. Ele, com uma bengala. Ela, magrinha. Ele se apoiou na bengala para ir até o aparelho de levantar peso. Ficou ali, exercitando seus frágeis braços. Ela, que tinha acabado de se alongar, ficou ao seu lado, vendo o marido em silêncio.

Na entrada principal, o cartaz

Observo muito essas pessoas e me sinto realmente bem em fazer parte daquele microcosmo. Ainda não consegui fazer amizade com ninguém. Mas nem é meu propósito. Gosto de ver todo mundo assim, como anônimos que reconheço por suas características. Tipo o cara do black power que costuma usar bermuda de ciclista. Ou o casal coreano que adora monopolizar o aparelho do equilíbrio (eu fico bronqueada com eles). E há sempre os "novatos". Neste sábado vi uma mulher negra, por volta de 35 anos, correndo ao lado da área dos equipamentos (eu já estava no "transport" - não é transport, porém é como se fosse). Camiseta regata, legging azul clara, uma faixa no alto da cabeça. Ao sair de lá, eu a vi de novo. Andava. Devia ter cansado de correr. Alguns metros abaixo, vi um cara com uma barriga saliente. Corria. Devia ser sua primeira volta porque a camisa não estava suada. Notei, entretanto, que já arfava um pouco. Eu me solidarizo com todos eles. No começo, embora convicta da minha meta (disputar a São Silvestre), duvidava de minha capacidade de correr 5 km, 10 km, quiça 15 km. Hoje sei que posso.

Quando saio do parque, as ruas ainda estão tranquilas; aqui, a rua Ribeiro de Lima

A química do cérebro

Já escrevi aqui a respeito das vezes em que a depressão volta. Meu psiquiatra diz que precisamos tomar cuidado para não pensar que qualquer tristeza é sinal de que uma crise se avizinha. Verdade. Só que naqueles dias não foi o caso. Não foi uma mera tristeza que me acometeu. Tive dias em que amanhecia tão arrasada que me faltavam meios de sair da cama e enfrentar a jornada. Uma manhã me pus a chorar porque não queria ir a lugar algum, mas não havia como desmarcar a consulta com a psicóloga. Isso porque a consulta é bem cedo. Então, juntei minhas forças e fui. E, quando entrei, ela me perguntou como eu estava. Minha resposta foi mais ou menos assim: "quero desistir de tudo. Não acredito mais em mim. Não tenho fé que conseguirei sair disto aqui".
Ela me ajudou muito. De certa forma, deu-me uma bronca. Estou conseguindo fazer tanta coisa, como poderia não acreditar que conseguiria superar tudo? E ela enumerava o que eu estava fazendo e comentava como as pessoas que desistem nem saem de casa. Eu estava ali, diante dela, não?! "Não sabe a que custo. Esse meu senso de responsabilidade é furioso. Não me deixa em paz", expliquei, com um tom de desânimo. Preciso ser assim tão responsável?
Resultado: sai de lá bem melhor. Minha fé ainda não estava reestabelecida como deveria. No entanto, dispus-me a tentar de novo. Entrei no ônibus rumo ao trabalho e cobri um choro rápido com os óculos escuros. E fiquei lamentando comigo: "eu estava correndo tão bem. Como vou desistir de correr?" Sim, sério. Pensei nisso. Estava triste também porque sabia que não teria pique de correr. Naquela tarde, cancelei a consulta com o psiquiatra. Eu não tinha ânimo.

O desafio de Chapultepec

Foram alguns dias sem correr. Às vezes, eu ensaiava uma volta. Dava aquela breve alegria. "Conseguirei vencer esta crise depressiva?" Não sabia, mas tentava. Tive minha primeira prova e me senti feliz. E em seguida viajei para a Cidade do México. Eu ia trabalhar, só que planejava fazer ao menos uma corrida na capital mexicana. Seria bom.
Aos poucos, a crise passou. Não sabia que podia acontecer isso. De você se sentir bem, achar que a doença estava superada e, de repente, ser acometida por uma fase ruim, de derrubar. Baqueei. E me surpreendi por me ver tão fraca durante aqueles dias.
Na Cidade do México eu estava bem melhor. Por ter passado mal dias antes - indo parar inclusive no hospital (foi no dia da prova dos 5 km; e o diagnóstico foi esforço físico demasiado para um corpo já debilitado por uma gripe e por má alimentação) -, um amigo tinha pedido para eu não correr. "Você não esteve bem estes dias. Lá é alto e você está frágil. Não corra".
Puxa, seria um desafio e tanto fazer uma corridinha na Cidade do México. Eu tinha corrido em Buenos Aires, não?! Seria mais uma história. No último dia lá, decidi. Correria! Já me sentia forte. A depressão? E eu lá sabia dela?! Exagero, mas mão me sentia deprimida como na semana anterior. Tinha caminhado bastante pelo centro da cidade, em lugares admiráveis e fiz esse passeio na companhia de gente muito legal: Edu, Saad e Raquel. A gente se divertiu bem. Foi um excelente remédio.

Meus companheiros de passeio pelo Templo Mayor, na Cidade do México: Edu, Raquel e Saad

Ao sair do hotel rumo ao Bosque de Chapultepec, uma brasileira me avisou: as mulheres mexicanas, pelo menos as que ela viu lá, não saem com shorts de corrida. "Não vi nenhuma. Todas correm de legging ou calças compridas". Minha reação foi perguntar se eu estava indecente. Não, não estava. Em Buenos Aires, as mulheres andam com shorts bem menores. Como uma mulher da Cidade do México podia ser tão diferente de uma portenha? É, a gente não sabe nada.
Fui para o bosque, uma área verde enorme, repleta de atrações como museus, monumentos e um zoológico. Disseram-me que é o pulmão da cidade. Mal entrei naquele lugar e busquei enxergar corredores. Não encontrei nenhum. Intimidei-me um pouco. Fui até uma mulher que vendia doces e outras guloseimas e perguntei onde corriam. "Por tudo aqui", respondeu-me alegre. "Mas não estou vendo corredores!", repliquei. "Ah, eles gostam de correr atrás do Castelo de Chapultec. Tem menos gente".
Fui até lá e peguei a trilha da direita, achando que seria melhor. Nada! Era uma subida rumo à entrada do castelo. Não deu um quilômetro e me vi sem fôlego. Parecia que eu tinha deixado um pulmão em São Paulo. Enfim, sentia o efeito da altitude (a Cidade do México está a 2,2 mil metros acima do mar, aproximadamente). Meu nariz ardia tanto por dentro que tive a sensação de que estava sangrando. Não estava. Era a secura e a polução, acho.
Cheguei no alto, tirei umas fotos e procurei recuperar o fôlego perdido na subida. Não pude entrar no castelo porque teria de pagar ingresso e havia uma fila gigante de estudantes. Era apenas uma quinta-feira. Mas como tinha gente. Voltei descendo a trilha num trote moderado.
Dali em diante, continuei correndo, mesmo com a sensação incômoda no nariz. Claro que não forcei tanto a velocidade. Mantive um ritmo regular para cumprir uma voltinha que fosse. Pensei em três quilômetros. Fui fazendo meu caminho, sem saber ao certo por onde ia. Tinha consciência do caminho para retornar. Não queria me perder até porque eu tinha um almoço marcado. Fui, fui, fui e vi a placa "zoo". Puxa, eu adoro visitar zoológicos. Peguei a trilha e quando estava diante da entrada do zoo procurei a bilheteria. Não encontrava. "Que azar, devo ter saído num lugar onde as pessoas entram já com os ingressos". Vi um balcão em que se vendiam bilhetes para tours com guias pela região. Ou algo assim. Perguntei para o sujeito que estava lá onde poderia comprar ingresso. O rapaz me explicou que eu poderia passar direto pela catraca. "Mas sem ingresso?", espantei-me. E ele: "O zoológico é gratuito". Uau, pensei. Em seguida, ele emenda: "Você é argentina?". Deveria ter lhe ocorrido isso porque eu falo espanhol, mas sem sotaque que evidencie minha origem. Esclareci que sou brasileira. "Sabes bailar samba?", continuou. Não. "Ni un poquito". Não (eu não queria prosseguir aquela conversa, temendo que ele me pedisse para sambar). "Tienes tobillos bien torneados". Ah, o short! Entendia com todas as letras a observação da colega brasileira a respeito da minha indumentária, que não condizia com os padrões das corredoras mexicanas. Ele estava falando dos meus tornozelos.

Você já viu um panda? No zoológico da Cidade do México, que é de graça, tem!

Enquanto corria, não reparava em olhares. Andando, sim, dava para perceber. Circulei pelo zoológico, que tem animais incríveis, e aguentei a curiosidade em cima de mim. Tanto bicho pra ver nos recintos e eu ali, atraindo atenção que me embaraçava. Principalmente porque parecia ser o dia das escolas! Como havia estudantes. E a maioria grandes, do tipo que estão no nosso ensino médio. Fiquei um tempo lá e, por não ter calculado bem a distância, vi o horário estava apertado. Resolvi correr mais um um quilômetro. Ou seja, corri ao todo 4 km na Cidade do México.

Humildade

Em São Paulo, demorei mais uns dias para voltar a correr. Mas retomei a atividade. No domingo passado fui ao Parque da Luz com o espírito renovado. Eu quero mesmo manter a regularidade. Torço para não cair de novo num buraco depressivo. Desta vez não vou ficar pensando que sou a mulher maravilha, a super poderosa que vence facilmente qualquer mal. O tratamento para depressão pode ser bem extenso. Normalmente, com os antidepressivos a terapia se estende por seis meses. Isso porque a gente trata a crise e depois continua com a medicação para modular a química cerebral. A fase aguda pode ter passado, mas sofremos com o desequilíbrio dos neurotransmissores por mais um tempo. "Se você parar de tomar os remédios agora, volta a ter uma crise em dois meses", alertou-me o psiquiatra.
Ok, entendi. Serei obediente e paciente. A psicóloga me disse outro dia que autoconfiança pode ser uma armadilha (para certos casos). Eu achava que estava indo super bem e me expus a uma situação que me botou à prova. Não dei conta. E acabei parando no buraco depressivo. Entendi. Serei mais humilde e não vou achar que tenho tantos superpoderes. A gente tem de aprender a reconhecer nossos limites.
Mas eu falava do domingo passado no parque. Vestir minha roupa de corrida me causou a sensação de vestir uma roupa de herói. Epa! Olha a autoconfiança aí. Tudo bem. É uma brincadeira. No entanto, é verdade que me veio um sentimento bom ao amarrar o cadarço, ajustar a superband para usar o Nike+, acionar o aplicativo RunKeeper no celular. E mantive esse astral quando cruzei o portão e revi o bom e velho Cão Amarelo, o guardião do parque. Como de hábito, ele dormia.

O velho e bom Cão Amarelo, que vive no Parque da Luz. Meu amigo

Dei minhas primeiras voltas e logo me cansei. "Que é isso?! Eu corri quatro quilômetros na Cidade do México. Não posso estar sentindo esses dois quilômetros", criticava-me. Não desisti. Insisti nas passadas, enxugava o rosto com minha toalha (eu carrego uma comigo), prosseguia. Foram pouco mais de 3 km. É, não foi nada espetacular. Prometi para mim que iria fazer melhor ao longo da semana.
Saí do parque e desci a rua Afonso Pena. Vi o Instituto Dom Bosco, que é ligado na igreja Nossa Senhora Auxiliadora e pedi informações. Estava procurando uma quadra para o time de futebol feminino que montei. Eles têm, mas faltam horários. Sem problemas. Eu iria deixar meu nome numa lista de espera. Sondei também se eles recebiam doações. Sim. Podiam receber minha cama de casal (estou trocando e a nova chega no dia 28). Exultei. Tinha conseguido duas boas respostas para duas demandas que estavam na minha mente.
Deixei o Dom Bosco para trás e daí ouvi o som da missa que estava no finalzinho. Aquilo me atraiu. Sem entrar na igreja ainda, vi que estava lotada. Que bom. Da última vez que estivera lá havia pouca gente. Era cedo (tipo 7h), e, mesmo dando esse desconto, ver tão poucos frequentadores tinha me impressionado. Naquele domingo, o quadro era bem outro. Desejei entrar, mas olhei para meus trajes de corredora. O rosto ainda estava afogueado, ainda que seco (bendita toalha). Estava de short, aquele que atraiu olhares sobre mim na Cidade do México. Hesitei.
Era o final da missa. Não iria incomodar muito. Entrei e me coloquei no fundo da igreja, sem me sentar. Encostei num cantinho perto da porta mais à direita (não sei quantas portas são). Algumas pessoas sentiram minha presença e olharam para trás, mas não se detiveram muito em mim. Logo voltaram a prestar atenção na fala do padre.
Virei para o lado para estudar o ambiente. Em outro canto de porta, na parte mais próxima da abertura central, estava um morador de rua. Encostado que nem eu. Com o jeito tímido como o meu. Nós dois. Eu me lembrei dele. No mês anterior, quando voltava da corrida, ele estava perto da porta da igreja, com seu carro cheio de papelão e me parou para pedir as horas. Respondi e ele me agradeceu com um "Deus te pague". Eu achava que era o mesmo homem que muitos dias antes estava sentando na mureta da outra saída da igreja e me pedira dinheiro. Eu não dou dinheiro na rua. Prefiro dar dinheiro para instituições. Acredito que dar dinheiro na rua acaba estimulando a permanência das pessoas naquela situação. Eu recusei de princípio, mas me arrependi e voltei, explicando ao homem que eu não dou dinheiro para as pessoas que pedem na rua. "Darei hoje, senhor. Mas se quer ser ajudado, entre ali, por favor", dissera na ocasião, apontando a igreja. Confesso que pensei menos em "conforto espiritual" e mais na possibilidade de alguém de lá encaminhar o homem para um atendimento social - eles fazem ali, oferecendo cursos e outras formas de assistência.
Não sei se era o mesmo homem que me pedira dinheiro. Certamente era o homem que me perguntara as horas no mês passado. Ele tem a barba comprida, densa e maltratada, assim como são seus cabelos. Seu olhar é baixo, humilde. Tem voz tímida. Anda com roupas velhas, mas não está sujo. Eu o olhei e ele se retraiu um pouco. Não quis incomodá-lo. Não devo.
Ficamos ali, os dois. Acompanhando o final da missa. O padre dizia que devemos desejar paz para nossos inimigos. Para os amigos, isso é fácil. E para quem não gosta da gente? E para quem a gente considera inimigo? "Elas precisam de paz. E para ter paz é preciso ter luz. Não lhe ofereçam as trevas. E sim dê mais luz a essas pessoas". No meu cantinho, pensei como isso é complicado.
Não creio ter inimigos. De todo modo, desejei paz a todos. Às pessoas que amo e às pessoas que não conheço, mas que precisam. Meu foco estava naquele homem que, como eu, estava intimidado e se escondera no fundo. Tão diferentes nossos motivos, tão díspares nossas condições no mundo, mas ali, naquele cenário, estávamos  iguais.
Paz para todos.

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